Deadpool & Wolverine (Ação/Comédia/Aventura): Elenco: Ryan Reynolds, Hugh Jackman, Emma Corrin, Cris Evans, Wesley Snipes, Channing Tatum, Morena Baccarin; Direção: Shawn Levy; EUA/Reino Unido/Austrália/Nova Zelândia/Canadá, 2024. 128 Min.
Dizem que a melhor defesa contra as críticas é a autocrítica e que o maior aprendizado da vida é rir de si mesmo. Nesse quesito “Deadpool e Wolverine” está bem servido. O longa-metragem dirigido por Shawn Levy é composto por, no mínimo, três camadas, a comercial, a analítica (que a gente pode categorizar como filosófica) e a sutil (implícita).
Na camada comercial percebe-se a Marvel se preparando para novos tempos dentro do Universo dos super-heróis para o cinema. Com uma conexão milimétrica com as produções de diversos nichos – HQs e séries – (inclusive “Loki” /2021), mantendo viva a memória dos fãs com pequenas lembranças de ítens e cenas marcantes que construiram a história desse universo através das cenas de filmes anteriores nos monitores da TVA (Autoridade de Variância Temporal). Através dessa estratégia, a produtora (Marvel/Disney) utiliza Deadpool& Wolverine como ponte para esta nova empreitada com explicações e contextualizações. A escolha não podia ser melhor, a de um personagem que se nega a enquadrar-se em formatos, normas e regra; que vem da subversão e da transgressão; um anti-herói que está pronto para tudo, tanto para o sucesso como para o fracasso, que ele conhece como ninguém.
A estratégia é muito bem pensada, afinal estamos em um contexto histórico novo, completamente diferente da época do século XX em que os personagens de super-heróis foram criados (1939 com a HQ nº1 da Marvel apresentando o Tocha humana). Estamos num contexto de desconstrução de tudo o que nossas sociedades instituíram como padrão. Logo, o mote é a quebra de padrão.
A ação no filme é um desses quesitos, virou coreografia, entrou pelo nicho da dança, com trilhas sonoras dissonantes saindo muito do clichê. Como em “Demolidor” (2015), o sangue escorre pela tela, diferente de toda a cinematografia da Marvel voltada para crianças em que, mesmo apresentando bastante violência, esse evento não acontece. E essa é um dos critérios para a classificação etária protocolada pela própria produtora em seus filmes, além das expressões chulas, a obscenidade escancarada, o consumo de álcool, a citação à drogas e irreverências outras.
Sobre a camada filosófica ou analítica, Deadpool é uma obra-prima da metalinguagem e do alinhamento da realidade estrutural da produção e do tempo histórico com a realidade ficcional. Conexões econômicas das transações FOX/Disney, reflexões da cultura Nerd sobre as personagens dos Vingadores e seus desdobramentos, etc. Nem as ‘gossips‘ escapam. Dos boatos/notícias de substituição de Wesley Snipes como Blade por Mahershala Ali ao divórcio de Hugh Jackman, nada escapa ao raciocínio rápido e língua ferina e livre de Wade Wilson, alter-ego de Deadpool.
Criticar a si mesmo, alfinetar a concorrência, atravessar a realidade com a ficção, manter a digital de alma do produto como a homenagem a Stan Lee e os easter eggs do vazio/lixão (mostrando que o que foi acabou mesmo) com coerência e bom senso, costurando cada ação com lógica Nerd* foi o primor do filme. “Deadpool & Wolverine” apresentam um novo conceito para o próximo nível dos MCU o de ‘âncora de uma linha de tempo’, que até aqui não havia sido trazido para o público. Tempo esse sustentado hoje por Loki (serie de TV) em seu trono para além do tempo. Ou seja, está tudo conectado de forma brilhante. Para finalizar esta camada, a técnica do rompimento da quarta parede não pode deixar de ser citada, já que é uma das características da estrutura de Deadpool desde as HQs. Essa conexão com o expectador é levada a sua potêcia maior em “Deadpool & Wolverine”, o que faz com que ele seja o cicerone mais adequado para esta transição do Universo Marvel de Cinema para o próximo nível, que dá a entender que será mais mágico e mais complexo, com mais cara de realidade HQ do que realidade ‘real’.
Sobre a camada sutil, existem momentos de mensagens bem discretas como a mensagem de coexistência escrita com os símbolos do Islam, o símbolo hippie, o da igualdade entre os gêneros, o do judaísmo, o do Taoismo e o do cristianismo formando a palavra ‘coexistir’ num fundo em azul com as letras em branco, que é uma das preciosidades escondidas no mise-en-scène do filme de forma muito inteligente; entre outros de tatibilidade nas cenas de violência entre Deadpool e Wolverine no carro, que ficam a critério do espectador e do alcance de suas redes de significação.
Se engana quem pensa que “Deadpool” é uma baboseira ou um grito de desespero da Marvel por não saber o que fazer depois que Thanos matou metade dos Universos, ou uma çacada a um público adulto saudoso das HQS. “Deadpool” é uma obra cinematográfica de seu tempo. Lembremos que o personagem surgiu na década de 90, é um dos mais recentes, voltados para uma nova geração, para um tempo diferente da criação dos demais personagens de super-heróis da casa. É também um instrumento de sondagem mercadológico, de mensuração de aceitação sobre até onde o estilo absceno e lascivo do personagem é acolhido; é um experimento sociológico sobre nossas sociedades (lembrando que em alguns países ele nem entra como entrenimento). Palavrões, álcool, drogas e sexualização são aspectos do cotidiano das sociedades ocidentais, só não estavam disponíveis em fóruns oficiais para serem consumidos como entretenimento, pois foram sempre legados ao submundo das artes, hoje são consumidos sem moderação nos espaços comuns mostrando, ou que estamos menos hipócritas ou que degeneramos de vez. Vai saber…
A subversão, a transgressão, a imposição de si mesmo como sendo o que é sem se ‘vender’ ao sistema (moralismos, enquadramentos, etc.), usando o deboche como arma e a sagacidade como radar faz de “Deadpool” fruto da contemporaneidade e um dos poucos personagens com capacidade de flexibilização para esses novos tempos de valores fluidos, velocidades e virtualidades inimagináveis no início do século XX. No contexto de uma linha temporal sagrada mantida com entroncamentos para outras temporalidades e multiversos, os personagens mortos poderão ressuscitar em suas novas versões atualizadas com o novo tempo, se comercialmente viáveis. Então, o longa de Shawn Levy é uma ferramenta e tanto para fase de testes. Em suma, “Deadpool & Wolverine” serviu para o que veio com sucesso.
*A produção se baseia fielmente às HQs. Torna-se injusto e sem sentido criar juízo de valor sobre a obra a partir de outro universo e outros critérios.
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