Timbuktu (Drama); Elenco: Ibrahim Ahmed, Abel Jafri, Toulou Kiki; Diretor: Abderrahmane Sissako; Mauritânia/França, 2014. 97 Min.
O cinema africano é o filho caçula na História do cinema mundial. Com pouco mais de meio século de existência, se estabeleceu com força total depois dos processos de independências dos países africanos de seus colonizadores. E construiu sua história de forma bastante peculiar. Inicialmente tinha como tema a reconstrução de seus espaços/nação. Num segundo momento, sua atenção se voltou mais para a manutenção das tradições e o registro de sua história baseada na cultura oral. Paralelo a isso, corria uma produção cinematográfica que tinha como objetivo um público maior, para além das fronteiras africanas. E surgiram os festivais de filmes , o de Burkina Faso e Cartago, na Tunísia, como polos divulgadores das produções africanas de cinema. A partir da década de 90 surge Nollywood, na Nigéria, o maior centro produtor de filmes do continente africano e terceiro maior do mundo, perde apenas para Bollywood, na Índia e Hollywood, nos EUA. Um polo produtor com suas peculiaridades, a modalidade de consumo é em vídeo/DVD (há poucas salas de cinema).
As décadas de 70 e 80 assistiram a uma explosão de criatividade e inventividade no cinema africano. E o maior festival de filmes do planeta, Cannes, abriu as portas para essa produção e as premiou: A palma de Ouro de 1975 foi para “Crônicas dos anos de fogo” do argelino Mohammed Lakhdar-Hamina, que retrata a luta da Argélia para se livrar do domínio colonial, visto e mostrado por dentro. O prêmio do Juri de 1987, do mesmo festival, foi para “A Luz” do malinês Souleymane Cissé, e é considerado um dos filmes de melhor fotografia do cinema mundial.
Nessa trajetória, com todos os percalços, nos é apresentado esse ano “Timbuktu” que concorreu ao Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro (uma louvação para o cinema africano). Dirigido pelo cineasta Abderrahmane Sissako nos conta a história de resistência de um povoado às leis recrudescidas do islã. Após a tomada de poder por uma vertente mais dura do islamismo, os aldeões ficam proibidos de fumar, jogar futebol, ouvir música, tocar instrumentos musicais, dançar, beber… e as mulheres ficam obrigadas a usarem véus e luvas, dentre outras posturas relativas à casamento, por exemplo. O que faz Sissako e o roteirista Kessen Tall é nos brindar com rasgos de resistências de todo o tipo: a racionalizada, a intempestiva, a indiferente, a poética e a insane. “Timbuktu” é um festival de transgressões dos sem-lugar. Gostoso de assistir, para os subversivos; doloroso, para os reacionários e inspirador para os adeptos de heroísmos e de uma “causa”. As metáforas imagéticas são poéticas e brilhantes. A cena da partida de futebol sem bola, o tai-chi-chuan do soldado islâmico sob as bênçãos do olhar da louca. A própria louca é um signo espetacular de transgressão, ela é a única que não usa véu nem luvas, enfrenta carros, soldados e armas, e dela, nada é exigido, é louca. O fiel escudeiro do regime fuma escondido. E o grupo de jovens que canta e toca instrumentos à noite, a música “Timbukto Fasso” de Amin Bouhafa com Fatoumata Diawara, é obrigado a interromper sua cantoria e sair correndo, mas canta assim mesmo. (divino!)
“Timbuktu” é uma co-produção da Mauritânia e França e é falado em cinco idiomas: Inglês, Francês, Árabe, Bambara e Songhay. E isso nos remete ao grande problema do cinema africano em relação à produção e distribuição – os idiomas e dialetos – na África Subsaariana. Já na África do norte o idioma oficial é o árabe, o que já facilita os processos de divulgação, distribuição e etc… O Mauritanês Abderrahmane Sissako é diretor, produtor e escritor, que ganhou o prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes 2002 com “Esperando a Felicidade” (Heremakona – no original ), é o cineasta africano mais ativo no momento e fez o mesmo caminho de formação que o senegalês Ousmane Sembène (1923-2007), considerado o pai do cinema africano; que o Malinês Souleymane Cissé e os Burquinenses Gaston Kaboré e Idrissa Ouedaraogo fizeram. Todos têm os pés no cinema russo, fizeram sua formação como cineastas em Moscou. No caso de Sissako sua linha inspiradora é a de Dziga Vertov, em que o cinema verdade é a vertente e o cotidiano é registrado com seus interstícios de dribles do poder instituído. Em suma, é um cinema político com graça, força, dor, realidade e poesia. A fotografia é de Sofian El Fani de “Azul é a cor mais quente” e é estupenda, traduzindo uma paz e uma harmonia inigualável com a natureza. A música é de Amin Bouhafa e contradiz toda a imagética de violência, constrasta gritantemente com os fuzis e as ações ásperas. Ela é a alma do muçumano, integrado às relações harmônicas, tanto as sociais, quanto as naturais (relativo à natureza) e é belíssima.
“Timbuktu” é um grito de protesto, muito bem metaforizado, contra o recrudescimento das leis islâmicas em relação aos costumes cotidianos, contra a tirania e o exercício espúrio de poder, visto de dentro, por quem vive. Não é um olhar estrangeiro, é o olhar do próprio muçulmano, mostrando sua espirituosidade, graça, vida e culturas versus uma linha religiosa dura, pela qual se julga e se mede a todos, com uma mesma medida – a do fundamentalismo. Colocar “Timbuktu” num ringue para brigar, ideologicamente, com “Sniper Americano” numa aula/palestra de filosofia e/ou antropologia e/ou sociologia dá um bom caldo. O filme de Abderrahmane Sissako é para pensar e se emocionar, porque é mais do que um filme político, no sentido gregário é uma poesia com um baita signo de esperança no final. Magnífico!
Obs: “Timbuktu” foi o grande vencedor da noite do César 2015, a premiação maior do cinema francês levando os prêmios de: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original, melhor fotografia, melhor montagem e melhor edição de som.
Deixar Um Comentário