Ao longo da História da humanidade sempre tivemos rupturas. Aqueles eventos que, de alguma forma, romperam com costumes e engessamentos que já não faziam sentido e que atravancavam o crescimento, seja tecnológico, seja humanitário e tantos outros. E todos eles não aconteceram de uma hora para outra, foram um processo em que as estruturas já desgastadas e irrelevantes para atender as necessidades e demandas de uma sociedade numa determinada época, se romperam liberando caminhos para novas oportunidades e formas de ver a vida e o mundo. Nada se ajeita de uma hora para outra, nem é sem dor. Mas, aquilo que teima em continuar a existir, seja de que âmbito for, beneficiando a apenas alguns em detrimento de todos, fazendo diferenciações inúteis tende a ser atualizado, ressignificado. Foi assim na revolução francesa quando os desmandos da monarquia impedia um crescimento econômico e político que necessitava se expandir; foi assim na revolução industrial em que a manufatura já não dava conta da necessidade de uma sociedade e necessitava-se de uma produção maior e em massa. Foi assim, na instituição da escrita como forma de registro, já que a oralidade também não dava mais conta de tantos acontecimentos e da manutenção da memória dos povos e das culturas.
Hoje, podemos analisa-los, por conta da distância no tempo, os seus processos, acontecimentos, benefícios ou não-benefícios. E por causa disso chegamos a considerações ou conclusões, como queiram chamar. Possivelmente, signifique que, enquanto estamos na ação, vivendo o momento, não consigamos entende-lo em seu processo com seus benefícios e sacrifícios, mas isso não quer dizer que não devemos refletir sobre, pensar no assunto ou deixar de discutir questões. Seguindo esse raciocínio, podemos tentar contextualizar o que esse momento mundial pelo qual passamos pode significar para a cultura, para o entretenimento, para o audiovisual, para as tecnologias das quais dispomos e que, possivelmente, usamos muito superficialmente, presos ainda ao presencial, ao engessamento de uma indústria cinematográfica que teima em separar o streamming de presencial – a sala de cinema – mesmo com todo crescimento dessa vertente audiovisual que contempla necessidades peculiares de barateamento e de aspectos de segurança.
Somos uma sociedade imagética e hoje, para o bem ou para o mal, através de uma tecnologia que nos permite quase que fundir espaço e tempo, conversamos com pessoas do outro lado do planeta em tempo real. Dentro desse contexto o conceito de CINEMA com sua forma presencial disputando público com as plataformas on demand – vide “O Irlândes – é um bom tema para discussão. Desde a primeira indicação de um filme de plataforma streamming ( “Beasts of no Nations” (2015) da Netflix ) para um Festival de cinema – o de Veneza – que entramos num impasse sobre o que é cinema daí por diante. A sala escura? A sala de casa?… podemos alargar esse conceito já que estamos falando da mesma linguagem, a audiovisual? Para não deixar dúvidas o longa teve quatro indicações, ganhou duas e em 2017 outro filme de streamming da mesma produtora ~, “Okja” (2017) foi indicado à Palma de Ouro no festival no Cannes gerando uma discussão monumental. Depois, os documentários de streamming bombaram nos Oscares subsequentes, inclusive ganhando –“Os Capacetes Brancos” (2016) – Isso incomodou muita gente, de Almodovar a Spielberg… para citar poucos e mais conhecidos. A discussão se dava mais na esfera da defesa de interesses da indústria cinematográfica do que no que concerne à questão artística, técnica.
Essas desconstruções e reflexões sobre mudanças e impactos de situações que extrapolam a nossa esfera de atribuições não faltam no próprio audiovisual como produto. De “The Fear Walking Dead” a “The Walking Dead”; de “Jogos Vorazes” a Maze Runner“; dos “12 Macacos” à “Mad Max”. Todos trazem situações apocalípticas em que se tem que reconstruir um mundo novo a partir daquilo a que se estava acostumado, juntando os cacos e sabendo que nada mais será como antes. E trazer para o nosso contexto a reflexão de que a necessidade do consumidor, de conforto, segurança e barateamento de seu entretenimento e outras variantes podem interferir no movimento com o qual o audiovisual no mundo inteiro vai adaptar-se a um novo tempo é uma questão premente nesse momento. Não só o audiovisual, mas como esse é o nosso assunto, é nele que vamos nos deter. O capitalismo sempre respondeu muito bem aos movimentos de mudança, sempre sobreviveu. Isso não é fim do cinema como conhecemos – uma sala escura, cheia de energias que vibram compartilhando os acontecimentos de uma história num filme e cheiro de pipoca – possivelmente, é uma rearrumação que a necessidade e o contexto de uma sociedade apresentaram/apresentarão
Agora, com a advento do COVID-19, que nos põe em quarentena o que nos resta é consumir cultura em casa. Ligar a TV e desfrutar de toda uma gama de produções audiovisuais de Gêneros diferentes que contemplam a todos os gostos. Forçadamente, vamos descobrir que conseguimos consumir cultura com qualidade em casa. Vamos utilizar a tecnologia não somente como um luxo, um privilégio, mas como uma necessidade. Isso iça a tecnologia a um degrau a mais de importância nas atividades culturais. E isso força o reconhecimento de que não há competição entre ambos – cinema e streamming – mas complementariedade. São vertentes diferentes de uma mesma arte e que, em tempos normais, são duas vertentes que podem conviver.
Depois de marcos históricos que mudam nossa forma de atuação em sociedade, que nos faz perceber o benesses que não havíamos percebido antes, que nos faz mudar de ideia quanto a alijamentos, que desengessa a nossa maneira de ver, inclusive a viabilização ou não da comercialidade de uma coisa dentro de um contexto histórico, é natural que nada mais seja como antes. Parar com a queda e braço entre cinema e streaming nos Festivais e celebrações da indústria cinematográfica pode ser um resultado bom desse período tenebroso pelo qual estamos passando.
Que essa pandemia nos ensine tudo o que precisamos aprender em todos as âmbitos de nossas vidas, pessoal, social, econômica, política e espiritual. Que cresçamos em relação ao cuidado conosco, a atenção ao nosso entorno, desenvolvamos empatia, aprendamos sobre a solidariedade e alteridade(“A Odisséia dos Tontos” /2019); que entendamos que uma sociedade inteira deve muito mais ao gari e ao enfermeiro e ao médico e cientista do que ao banqueiro (“Parasita”/2019); que passemos a perceber o quanto os investimentos em ciência e no humano é mais importante do que bitcoins e deixemos de pensar que somos highlanders.(“Capital Humano” /2013). A melhor forma de passarmos por algo difícil é acreditar que tudo no final dá certo. Mais clichê do que isso impossível, não é não? Mas, foram os filmes que nos incutiram essa ideia. Se é a arte que imita a vida ou se é a vida que imita arte, não sei. Só sei que está assim. Pode até parecer ironia, mas não é não…uma excelente quarentena a todos nós, com muitos bons filmes, séries e muita reflexão…. mais uma vez, é a arte que nos salva.
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