Maria – Não esqueça que Eu Venho dos Trópicos (Documentário); Participações: Maria Martins (imagens de arquivo), Miguel Rio Branco, Paulo Herkenhorff, Michael Taylor, Carolyn Christov-Bakargiev, Verônica Stigger, Mario Cravo Filho, Lucia Romano, Celso Frateschi, Malu Mader; Direção: Francisco Cataldi Martins e Elisa Gomes; Brasil, 2017. 80 Min.
Quanto mais paramos para ouvir histórias sobre mulheres e suas ações desbravadoras de caminhos, mais nos admiramos do quanto somos polivalentes, camufladas e polimorfas (licença poética), e que com graça e muita classe conseguimos imprimir nossa marca no mundo, o doce veneno de nossos exemplos a outras gerações. Driblando o poder instituído com um sorriso gracioso a mulher vanguardista prossegue sempre em suas conquistas com se fosse quase uma missão encarnatória, e é isso que nos mostra o documentário dirigido por Francisco Cataldi Martins, conhecido como Ícaro Martins e a atriz, produtora e pesquisadora Elisa Gomes que trazem a história da embaixatriz Maria Martins (1894-1973) e seu trabalho como escultora, na primeira metade do século XX.
Existe um dito popular que diz que “Amélia é que era mulher de verdade”, descendente de Eva – me apropriando do conto adâmico – era perfeita submissa e silenciosa. Reza outro conto, o do folclore popular hebreu medieval que as desobedientes eram descendentes de Lilith – uma personagem paralela ao conto adâmico e que fora criada do barro e não da costela de Adão. Maria Martins se encaixa nessa metáfora belíssima que desenha a rebeldia feminina classuda diante do patriarcalismo, como descendente de Lilith. Uma mulher nascido no Século XIX, que ousava se separar e casar-se com outro quando ainda não existia o divórcio no Brasil. Que tinha uma relação aberta com seu marido, que fôra amante de Marcel Duchamp e Benito Mussolini, gostava de gente e vivia nas latas rodas das sociedades americana e européia. Casada com o diplomata Carlos Martins, Maria não se prestava ao papel decorativo de promover chás beneficentes e resolveu trabalhar. O detalhe é que estamos falando da década de 30. Foi nesse período que Maria iniciou seus trabalhos em terracota, mármore e cera perdida, mudando para o bronze, matéria a qual se identificou a passou a produzir seus demais trabalhos. E como se não bastasse tudo isso, seu tema era o desejo como essência humana, e seu viés a sexualidade feminina. Pioneira na arte da escultura no Brasil, como mulher, sua abordagem é político-transgressora; seus objetos: deusas, monstros sensuais, a nudez, a carnalidade explícita e implícita. Sua relação com Marcel Duchamp – escultor e poeta francês – é um atravessamento que consta no longa com um link de sua liberdade e transgressão pessoal. Inspirado nela, Duchamp esculpiu o seio (“Prière de Toucher / Toque por favor) que fôra capa do catálogo da exposição “Le Surrealisme” em 1947.
“Maria – Não Esqueça que Eu Venho dos Trópicos” é um documentário que segue uma forma interessante. Os pensamentos e textos atribuídos a Maria e demais, recebidos por ela de amigos, incluindo Marcel Duchamp são lidos pelos atores Lúcia Romano e Celso Frateschi e as entrevistas são conduzidas por Malu Mader. Entre os entrevistados estão: Michael Taylor curador do Museu de Arte da Virgínia, EUA; a curadora do Documenta 13, Carolyn Christov-Bakatgiev; a escritora e crítica de arte Verônica Stigger; o artista plástico Mario Cravo Filho; o fotógrafo Miguel Rio Branco e o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff. Assistir ao longa-metragem nos faz voltar ao tempo de Maria através de seus relatos pessoais e poéticos e, ao mesmo tempo, nos faz senti-la uma mulher do século XXI, tamanha a sua atualidade e vanguardismo.
Ícaro Martins é um dos pioneiros do novo cinema paulista, roteirista do documentário: “Tempo de Resistência” (2003) de André Ristum e co-diretor do filme “Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha” (2010) juntamente com Helena Ignez. Assina a direção de “Maria – Não Esqueça que Eu Venho dos Trópicos” com Elisa Gomes que estreia como diretora e traz para a telona um primor de pesquisa biográfica. O documentário seleciona público pelo seu conteúdo e pelos caminhos que ele percorre – o das artes plásticas – e no nicho no qual está inserido a alta sociedade mundial e o rastro de uma brasileira ilustre. E que nos diz, com todas as letras, que o reconhecimento tardio, infelizmente, é nossa característica nessa modalidade primitiva de existência na qual estamos. Mas, mesmo assim o documentário cumpre bem esse papel – o de reconhecimento – e de homenagem a uma mulher além de seu tempo. Vale o ingresso!
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