Nós, Eles e Eu ( Ney: Nosotros, Ellos y Yo) (documentário); Participações: Nur Al Levi, Frieda Geffner, Abu Herbed, Sebastián Muller, Iosef Shai; Direção: Nicolás Avruj; Argentina/Israel/Palestina, 2015. 88 Min.
“Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial”
(Caetano Veloso)
O documentário acidental de Nicolás Avruj é fruto de uma alma jovem e audaz. Realizado em 2000, antes dos ataques de 11 de setembro, antes da primavera árabe e em plena era Yasser Arafat, “Nós, Ele e Eu” é uma viagem documental sobre o cotidiano da conviviência entre árabes e judeus nos territórios ocupados, sobre a visão de ambos os lados um do outro e sobre os conflitos na faixa de Gaza e na Cisjordânia. Entrando no circuito quatorze anos depois de filmado, a edição é super contextualizada para os nossos dias e merece um prêmio pela linha de isenção (ou a tentativa dela). O documentário é uma pedra-sabão bem lapidada para pensar a paz no Oriente Médio pelo viés histórico.
Em 2000, Nicolás Avruj, um judeu argentino, então com 24 anos, viajou para Tel Aviv visitar o primo que estudava lá. Quando chegou o primo havia acabado de pegar um vôo para a Argentina. Sozinho com sua mochila, sua câmera e sua idade de imortal, Avruj se aventurou pelos territórios ocupados na faixa de Gaza e pelos assentamentos da Cisjordânia e escutou o dois lados e gerações diferentes. Com uma narrativa que dissertava, inclusive, sobre seus temores, questionando absolutamente tudo e se negando a tomar partido de qualquer lado que fosse Nicolás Avruj registra a vida dessas pessoas em suas casas, seu cotidiano, suas necessidades, partilha suas histórias e ouve suas confissões realistas. Algumas eivadas de ódio engessadas no arcabouço histórico da briga milenar entre Ismael e Isaque; e outras esperançosas e questionadoras de toda essa saga bélica desproporcional na co-relação de forças.
Nicolás Avruj, diretor, produtor, editor, cinegrafista e roteirista tem em “Nós, Eles e Eu” seu primeiro documentário de longa-metragem. E em sua carreira se destaca como produtor, tendo em seu currículo o premiado “Refugiado” (2014). O roteiro foi desenvolvido para a edição por ele em conjunto com Alejandro Dujovne e a editora Andreia Kleiman, que teve o cuidado de desenhar um painel o mais contemporâneo possível, pontuando somente a época e a história da celeuma bíblica; deixando de lado o contexto político específico que não interessava já que a pegada é humanística. A obra causa tensão em alguns momentos, vendo um jovem escarafunchar um contexto histórico como quem mexe num baú da avó; em outros momentos desconforto, sem saber até onde Avruj vai e até que ponto ele feriria o sionismo, em outros, ainda, dúvida sobre aquela saga toda, se tudo não estava acordado e muitos, muitos questionamentos sobre a quem pertence essa briga, de fato. Se o objetivo daquele menino há quatorze anos atrás foi desconstruir alguma coisa, conseguiu.
A reflexão que vai de encontro ao sionismo realizado por um judeu sozinho com sua câmera e sem roteiro (pelos menos enquanto filmava), os questionamentos ousados que em alguns momentos cheiram a afronta à sua cultura milenar, nos faz lembrar os de Hanna Arendt na cobertura do julgamento de Adolf Eichmann (salvaguardadas as devidas proporções) em que sua postura de questionamento de uma justiça falseada e de consolo fajuto lhe pôs numa posição difícil diante de seus pares. Nicolás Avruj do alto de sua juventude nonsense e perguntando tudo a todos como uma criança, abre precedentes para aventarmos a possibilidade de paz através do silenciamento do rancor histórico e da renovação das gerações com esse poder de questionamento.
“Ney: Nosotros, ellos y yo” (no original) é um pouco a mistura do caos do sangue latino entrando em questões milenares com quem, por sua posição como judeu, pode fazê-lo. É alguém falando de dentro de sua própria cultura e raízes. O longa, além de questionador é cheio de símbolos de esperança, principalmente durante os créditos finais e ainda na dedicatória: “A TODOS os que me deram água para beber no deserto e que me alojaram em suas casas nesta viagem”. Em suma, o documentário de Nicolás Avruj é o cinema a serviço da conscientização e da paz e ainda nos mostra que vem coisa boa da Argentina além de Ricardo Darin.
- Lembrando que o documentário é uma produção em conjunto entre a Argentina (majoritária), Israel e Palestina.
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