A Pedra de paciência (Syngué Sabour, pierre de patienci). (Drama/Guerra). Elenco: Golshifteh Farahani, Hamid Djavadan, Hassina Burgan; Diretor: Atiq Rahimi; Afeganistão/França/Alemanha/Reino Unido, 2012. 102 Min.
Um filme psicanalítico. “A pedra de paciência” de Atiq Rahimi é uma personagem conceitual para pensar a alma feminina. É a história de um momento na vida de uma mulher jovem, moradora de um vilarejo no Afeganistão, em meio às guerrilhas da Jirad, com duas crianças pequenas e um marido em coma dentro de casa, por conta de um tiro no pescoço.
As personagens não têm identidade. Golshfteh Farani é “A mulher”, Hamis Djavadan é “O homem”, Hassina Burgan é “A tia” e Massi Mrowat é ” O soldado jovem”. São os seres humanos representados em sua complexidade. No enredo, “A mulher” transforma seu marido moribundo – O homem – em seu confidente, contando a ele os segredos mais sórdidos de sua alma e trajetória, os seus desejos escondidos, sua táticas de sobrevivência numa cultura fechada para as fluidez da vida, suas decepções, expectativas e conflitos entre a natureza humana e a doutrina do Alcorão. Conflito esse, que diga-se de passagem, é muito bem encenado.
A pedra de paciência é uma história da mitologia persa que versa sobre uma pedra que é repositório de dores e tristezas de alguém, e que quando se quebra leva consigo as dores expurgadas por esse alguém. “A mulher” faz de seu marido quase morto a sua pedra de paciência. O que para nós, ocidentais, seria uma espécie de psicanalista. A cultura da sobrevivência e do contexto de vida no regime talibã é bem apresentada, sem questionar os dogmas doutrinários. Mas, se mostra em meio ao emaranhado dos nós das redes do cotidiano o que a doutrina impõe. E apresenta seres humanos se debatendo, para exercerem sua natureza primitiva em consonância com a cultura e com a vida em sociedade. Os costumes estão presentes em tudo. Nas vestes, nos alimentos, na perspectiva sobre a vida e o futuro, no fazer cotidiano. Mas, o humano fora do engessamento da cultura, nos é apresentado através dos olhos que perscrutam a vida. Aquela que a alma pede, independente dos dogmas. O filme nos mostra a vida de uma mulher casada na cultura árabe, e a de uma prostituta, “A tia”. O que essas mulheres falam, o que pensam , o que sentem em relação à vida, à sexualidade e aos homens.
Num primeiro momento, é bem óbvia a semelhança com “A fonte das Mulheres” de Radu Mihaileanu, em que uma coletividade de mulheres se amotina contra os homens e tentam, nos interstícios do cotidiano, terem voz e lugar nos espaços familiar e comunitário, a cultura é a mesma. Mas as semelhanças terminam por aí. E nesse ínterim, ouso ser afoita e provocativa, pois o que toca no filme é completamente fora da cultura de qualquer povo, é o humano primitivo. E por conta disso, comparo “A pedra de paciência” ao americaníssimo “As pontes de Madison” de Clint Eastwood, por causa de pontos de interseções vitais, tanto na produção da obra como na abordagem do tema: 1) ambos são escritos, adaptados e dirigidos por homens; 2) Ambos são filmes sobre a alma feminina. E esse lugar comum é muito interessante. Ambos, são o olhar do homem sobre o desejo da mulher, colocando na panela de pressão toda a controvérsia, conflitos internos, medos e desejos, da maneira mais crua e realista possível. E são tão parecidos nessas leituras, mesmo um sendo muçulmano e o outro judaico-cristão ocidental. E terminam de forma inteligente e realista, sem enfeitar o pavão. O que dá um tom de veracidade espetacular as subjetividades.
Enquanto “A Mulher”, de “A pedra de paciência” tem obrigações para com o marido, Francesca de “As pontes de Madison” também. Ambas têm curiosidades e desejos escondidos, e cada uma os realiza dentro de seu contexto peculiar. A forma desse registro, desses olhares e buscas, pelos dois cineastas é brilhante, lenta, direta, normalmente num take só. “A Pedra de paciência” além de apresentar uma igualdade entre os seres humanos, no que concerne as fomes e os desejos da nossa modalidade de existência, também nos joga para a realidade da cultura de cada um. O final escolhido, se não fosse aquele, fatalmente, na cultura muçulmana, o seria de qualquer outra forma.
Mas não dá para falar só de contexto reflexivo, aquele posto nas entrelinhas e que cada um interpreta ou fabula com as suas redes e seus repertórios de experiências, registros e que possibilitam divagar sobre ele, há também as tecnicalidades de um filme. E falando nelas, Atiq Rahimi prova que não é necessário zilhões de dólares para fazer um bom filme. Premiadíssimo por “Khakistar-o-Khak” (2004), que foi conceituado como um road-movie poético e detalhado sobre a trágica realidade da guerra do Afeganistão, já abocanhou dois prêmios (Hong-Kong e Istambul) com “A pedra da paciência”. A fotografia é de babar, e quem assina é Thierry Arbogost, o mesmo de “Lucy”. A trilha sonora, que divide interlúdios com as metralhadoras e bombas da guerrilha, é de Max Richter de “Ilha do medo”.
Independente do gosto de cada um, o mais recente filme de Atiq Rahimi, possivelmente, é mais palatável para quem gosta de viajar pelos olhos do outro e, quem sabe, descobrir que as diferenças e distâncias entre os seres humanos não são tão grandes assim. “A pedra de paciência” cumpre muito bem esse papel. Salaam Aleikum.
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