Tudo sob descontrole (En Roue Libre) (comédia); Elenco: Marina Föis, Benjamin Voisin, Jean-charles Clichet; Direção: Didier Barcelo; França, 2022. 89 Min
O cinema é um grande puxador de assuntos. A arte cinematográfica pode nos convidar a passar por lugares dentro de nós que não teríamos coragem de fazê-lo deliberadamente, principalmente quando se trata de assuntos sensíveis ou de difícil abordagem em nossos cotidianos. Quem em sã consciência convidaria um amigo para jantar para conversar sobre síndrome do pânico? Pois é, depois de assistir a “Tudo sob Descontrole” o assunto é certo.
Dirigido por Didier Barcelo, o longa-metragem tem como argumento um ataque de pânico sofrido por uma enfermeira pela manhã ao entrar em seu carro. A crise se junta a todos os acontecimentos do dia e compõe uma história engraçada, com ares de reflexão psicológica e filosófica que se constrói e desconstrói com argumentos inteligentes, perspicácia e de forma enxuta, sem sobrar nada que se diga que ali não precisava estar, seja um assunto ou circunstância; e sem faltar nada nos diálogos e/ou nas situações apresentadas que não fechasse redondinho com o argumento escolhido e as possibilidades que a vida tem de nos surpreender. As situações vão se somando a partir de encontros; se acumulando umas sobre as outras criando um mosaico cotidiano de questões não resolvidas e de atravessamentos que desenham bem a trama da vida e suas camadas. A narrativa vai se constituindo, ao longo da exibição, numa sessão de terapia sob rodas. É brilhante quando, metaforicamente, coloca um cego para guiar outro; quando apresenta as facetas da vida com sua incongruências; quando faz pensar sobre o lado patético da vida humana e ao mesmo tempo apresenta sua grandiosidade; quando apresenta de forma bem simples as fragilidades e as fortalezas das relações e as certezas equivocadas individuais e quando vai da pura sordidez humana à mais pura solidariedade sem julgamento.
Louise é interpretada por Marina Föis, conhecida pelo premiado “As Bestas” (2022) e indicada ao César por “Darling” (2007). Seu companheiro de aventuras é Paul, interpretado por Benjamin Voisin de Ilusões Perdidas” (2021) e David (Jean-Charles Clichet) que tem no currículo vários filmes, todos de alcance local. O roteiro foi escrito pelo próprio diretor juntamente com Marie Deshaires, oriunda de séries de TV. O forte do longa é, sem dúvida, seu roteiro, mas o que o engrandece são as atuações estupendas dos três atores que dão vida a essa história.
“En Roue Libre” (no original) é uma comédia inteligente, faz rir e faz pensar. Consegue causar identificação no espectador. Senão pelas situações psicológicas, o faz pela apresentação de circunstâncias que são comuns a qualquer um de nós, e o faz de forma brilhante, porque não força a barra, não explica demais. Simplesmente apresenta as questões e deixa o espectador terminar o desenho. “Tudo Sob Descontrole” passa atestado do que já sabemos, que ninguém controla nada. E dentro dessa premissa leva o espectador num passeio metafórico pela condição humana. O longa de Didier Barcelo é um exemplar do bom e velho cinema francês falando de uma cabeça de alfinete com arte, inteligência, grandiosidade e simplicidade… e merece ser apreciado sem moderação.
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