Antes o Tempo Não Acabava

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Antes o Tempo Não Acabava

Por | 2018-06-16T19:58:53-03:00 12 de dezembro de 2017|Crítica Cinematográfica|0 Comentários

Antes o Tempo não Acabava (Time Was Endless) (Drama); Elenco: Anderson Tikuna, Tita Carelli, Begê Muniz, Emanuel Aragão, Severino Kedasserê, Fidelis Baniwa, Kay Sara; Direção: Sérgio Andrade e Fábio Baldo; Brasil/Alemanha, 2016. 85 Min.

A ousadia dos novos cineastas é algo a ser ovacionado. Mais do que isso, a abordagem de temas delicados e suas conexões sem panos quentes, sem filtros, fomentando a reflexão sobre assuntos que ninguém quer falar é a cereja do bolo das produções cinematográficas contemporâneas. “Antes o Tempo não Acabava” é um exemplo dessas produções. Trazendo à baila o processo de aculturação dos indígenas, o choque entre tradição e modernidade e, a singularidade da natureza humana que é supra cultural em relação a a seus instintos, os diretores e roteiristas Sérgio Andrade e Fábio Baldo versam sobre orientação sexual num longa-metragem de pegada antropológica.

Anderson (Anderson Tikuna) é um índio que, desde seu ritual de iniciação apresenta conflitos internos e estranhamentos. Já adulto vai para o centro de Manaus  e sofre com o choque cultural, diferenças de costumes, crenças e signos comportamentais. Seus conflitos se acirram quando assume ter atração sexual por pessoas do mesmo sexo. Esse caldeirão com tantos aspectos poderosos misturados em um cotidiano ordinário, faz do filme quase que uma saga antropológica. Abordado com simplicidade e pinçando aspectos preponderantes, como: as diferenças entre os costumes do branco e do índio, a busca de Anderson por um nome de branco, o conflito das crenças com licença poética para personificação de entidades espirituais, a liturgia dos rituais, seus significados e atravessamentos o longa  faz pensar sobre quem somos e a construção que fazemos de nós em relação ao lugar no qual estamos, as pessoas com as quais nos relacionamos e os costumes do ambiente ao qual pertencemos. O questionamento é sobre o homem puro, aquele que nasce como uma folha em branco na qual vão sendo desenhadas a identidade social, psicológica e espiritual. Para além disso, tem a sexualidade com sua orientação independente dessas variantes. E esse é o grande mote, aquilo que está acima de qualquer construção e se impõe. Como lidar com isso dentro dessas engrenagens. O longa-metragem nos faz pensar em quem somos e o que nos transforma no que somos e quais os limites dessa ‘criação’. Com cenas poderosas de exercício da nossa natureza a produção brasileira em parceria com a Alemanha é imageticamente forte em seus atravessamentos.

Dirigido a quatro mãos pelos cineasta amazonense Sérgio Andrade de “A Floresta de Jonathas” (2012) e o paulista Fábio Baldo, diretor de curta-metragens premiados como: “É Tudo Lágrima” (2013), “Da Origem” (2011) e “Caos” (2010); “Antes o Tempo Não Acabava” é uma metáfora poética da nostalgia da origem e sobre a harmonia que temos com quem somos quando não nos conhecemos. Estrelado por um índio da etnia Tikuna que tem trabalhos como ator no curta “Cachoeira” e nos longas “Floresta de Jonathas” e “Velho Oeste” (2016) – em processo de pós-produção – e “A Torre Negra de Kawa” – em processo de filmagem – e pela atriz Rita Carelli de “Permanência” (2014) que interpreta a ambientalista Pia, a produção brasileira não deixa a desejar em tecnicalidades. E por falar nelas, a fotografia é de Yure César que juntou o contraponto dos dois mundos num mesmo frame e, ainda, Oscar Ramos de “Tainá: Uma aventura na Amazônia” assina  o design de produção.

Quanto aos resultados, o filme abocanhou prêmios importantes em festivais. “Antes o Tempo Não Acabava” venceu o prêmio de melhor filme  e melhor ator para Anderson Tikuna no festival Internacional de Cinema Queer de Lisboa; foi vencedor, também, nas categorias de melhor filme, ator e roteiro no Vitória Cinevídeo e foi indicado ao Grande Prêmio no Tolouse Latin American Film Festival e ao FIPRESCI do Festival de Berlim. 

Falado em português e mais quatro dialetos indígenas (Saberê, Mawé, Neeguetu e Tariano). “Antes o Tempo Não Acabava” traz para os holofotes o conflito entre tradição e modernidade; nos bastidores foi palco de convivência de etnias diferentes e em seu resultado final culmina na abordagem de questões como: migração, miscigenação, exploração de mão-de-obra indígena e sexualidade, todos  assuntos que jamais discutiríamos à mesa se não fosse o cinema.

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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