Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro) (Documentário); Participações: James Baldwin, Samuel L. Jackson; Direção: Raoul Peck; França/USA, 2016. 93 Min.
A história desse documentário é, no mínimo, inusitada. James Baldwin, escritor, dramaturgo, e um grande crítico e analista social da realidade do negro nos Estados Unidos da América, em 1979 iniciou o projeto de escrita do livro Remember this House . A Obra seria sobre a vida e os assassinatos de Medgar Evers, Malcon X e Martin Luther King Jr. Quando faleceu, em 1987, deixou a obra inacabada. O cineasta Raoul Peck, quase quatro décadas depois, decide tornar esse projeto realidade em forma de documentário. Com imagens de arquivo de entrevista do próprio Baldwin, de trechos de filmes que se afinam com o assunto e de músicas negras nas vozes de ícones das décadas de 20/30/40 em diante, Peck faz uma viagem de memória e valoração cultural, traçando um painel doloroso e cruel da realidade do afro-americano na História dos EUA. A Costura narrativa é do próprio Baldwin, são as palavras dele, seu raciocínio e suas ideias sobre a criação do conceito de negro na América que costuram o longa até o fim. A saga é contada por Samuel L. Jackson.
Raoul Peck é um cineasta haitiano engajado que dirigiu “Abril Sangrento” (2005) e “Lumumba” (2000). Sempre com um viés político relativo a etnia, Peck, dessa vez, fez um trabalho de garimpo e alto compromisso numa pesquisa de arrepiar e com uma responsabilidade e tanto: dar continuidade ou fechar a obra de James Baldwin. Sua meticulosidade foi tamanha que ele não abandona o olhar de Baldwin. Produzido pela França (majoritariamente) em parceira com os EUA, o documentário acaba sendo um olhar externo, por isso mais acurado, sobre a questão racial na História dos Estados Unidos, e isso deu bastante liberdade e permitiu a contundência que se vê na narrativa.
Um aspecto a ser destacado é a edição do longa que é primorosa e é assinada por Alexandra Strauss de “Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência” (2014). Peck e Strauss, além das imagens de arquivo da época (década de 60) inseriram cenas de filmes clássicos como “A Cabana do pai Tomás” (1927), King-Kong” (1933),O Nascimento de Uma Nação” (1915) dentre outras obras preciosíssimas , mostrando como o cinema deu sua contribuição para a moldagem desse imaginário social do negro. As músicas negras entram como produção cultural dos negros ao longo do século XX e vão de Tommy Johnson (Big Road Blues, 1928); Nat ‘King’ Cole (Routte 66, 1946), Lena Horne (Stormy Weather, 1956) e tantas outras memoráveis.
A obra cinematográfica “Eu Não Sou Seu Negro” não é só o arremate da obra inacabada de Baldwin em outra linguagem midiática. Mas, um painel da produção de pensamento do negro através das reflexões de James Baldwin, da produção cultural do negro americano e um tapa na cara de uma sociedade que se diz guardiã da liberdade. O longa de Raoul Peck vem ao encontro de outro documentário poderoso, dirigido por Ava Duvernay “A 13ª Emenda”, um complementa o outro e conversam magistralmente.
Outro aspecto interessante a ser analisado, ou pelo menos levado em consideração, são o das premiações. Indicado ao Oscar na categoria de Melhor documentário ( que deve levar) o longa abocanhou prêmios em festivais. Porém, em áreas que a majoritariedade populacional é negra os prêmios foram da instituição (juri) como St. Louis (da Associação de Críticos), na Philadelphia (prêmio do Juri) e no Black Film Critics Circle Awards (menção especial). Nos demais lugares onde a representatividade negra não é tão forte os prêmios foram do público. Salvo a Associação de críticos de Los Angeles, de São Francisco e da Associação Internacional de Documentários que deram o prêmio máximo. O restante ficou mesmo na indicações, foram 33 ao total.
Ressaltando, ainda, o trabalho de fotografia, cuja direção foi feita por três feras, também da seara de documentários e cuja pesquisa é de uma riqueza de brilhar os olhos. São eles: Henry Adebonojo de “Half Past Autumm: The Life and Works of Gordon Parks” (2001); Bill Ross de “Western” (2015) – documentário – e Turner Ross de “Contemporary Colours” (2016). Raoul Peck não economizou em Euros franceses na produção de uma obra que poderia ter sido lida por milhares na década de 80. Hoje ela pode ser ‘vista’ por milhões em 93 min na tela do cinema, e quem sabe, com as bençãos comerciais do Oscar.
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