Happy, Happy

Happy, Happy

Por | 2018-06-16T23:43:46-03:00 24 de março de 2015|Crítica Cinematográfica|0 Comentários

Happy, Happy (Sykt Lykkelig). (Comédia/Drama); Elenco: Agnes Kittelsen, Joachim Rafaelsen, Maibritt Saerens, Henrik Rafaelsen, Oskar Hernaes Brandso, Ram Shirab Ebedy; Diretora: Anne Sewitsky; Noruega, 2010. 85 Min.

O filme da cineasta Anne Sewitsky foi a indicação da Noruega ao Oscar 2012 na categoria de  filme estrangeiro, e que estreia por terras brasileiras essa semana com um atraso de cinco anos em relação à produção. “Happy, Happy” segue a mesma linha de “Força Maior” discutindo relações, construções sociais e o que somos em detrimento do que esperam de nós. Mas, é muito mais visceral e engraçado. A obra discute temas pesados como adultério, homossexualidade e racismo, numa dança de morde e assopra que faz gosto. A menina dos olhos de “Happy, Happy” é a abordagem.

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A história é um recorte de tempo da vida de duas famílias a de  Eirik (Joachim Rafaelsen) e Kaja (Agnes Kittelsen) e seu filho Theodor (Oskar Hernaes Brandso); e a de Sigve (Henrik Rafaelsen), Elisabeth (Maibrit Saerens) e seu filho adotivo Noa (Ram Shihab Ebedy). No primeiro núcleo, Kaja é uma órfã que teve a ‘sorte’ de encontrar Eirik e formar uma família, então ela acha que deve agradar sempre para não perder aquilo que tem, ou acha que tem. Portanto, não tem autoestima, vive sempre sorrindo faça chuva ou faça sol e não se impõe, aceita tudo o que lhe acontece. Eirik tem seus segredos, é hostil com a mulher e juntos vivem isolados do mundo, ao derredor de uma cidadezinha nórdica. Surge então, Sigve e Elisabeth, um casal que está tentando recomeçar depois da traição conjugal de Elisabeth, e formam uma família cosmopolita, descolada e viajados,  cujo filho adotivo é da Etiópia. Esses mundos diferentes se encontram e tentam achar um lugar de interseção. E é aí que a história começa.

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O roteiro foi escrito a seis mãos. Pela dramaturga Mette M. Bolstad, a diretora Anne Sewitsky e  a roteirista  Ragnhild Tronvoll. Sendo assim a história tem uma pegada teatral que é percebida não só nas interpretações, como na forma de apresentação da música na película, que é um signo de suavização do peso das temáticas trabalhadas. E na própria história entra como um amortecedor do stress cotidiano, e uma ponte para o convívio social. Essa linha  de abordagem é que faz a grande diferença. O alívio da tensão se dá com a espontaneidade de criança, na interpretação das cenas mais afoitas, e sem criação de juízos de valor,  guiado pela música que entrecorta as cenas no melhor estilo Jersey Boys. Os questionamentos são em torno das posturas sexuais que assumimos ao longo da vida, cerceados pelos muros e cercas do que é aceito ou não pela sociedade, sem levar em consideração a natureza e os instintos. E postula que esses arcabouços de hipocrisia são construções de infância. E a forma com que as três abordam isso é de uma ousadia digna de aplausos, elas usam o núcleo das crianças para fazer essa ponte. Theo e Noa são de origens diferentes. Por conta disso, Theo inicia uma manipulação de construção de identidade de escravo em Noa através de livros, vídeos e brincadeiras, numa criação  falseada e deslocada da realidade e do espaçotempo que eles ocupam, e que vai ganhando corpo, até Noa encontrar um personagem negro importante, e desmistificar essa “verdade”. A ponte entre a inoculação de “verdades” na medula da alma, através da inculcação, educação e exercício de poder, metaforizado no núcleo das crianças, e as posturas sexuais dos adultos como construção social, é estupenda.

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Nos quesitos técnicos também não ficam para trás, a fotografia é de Anna Myking e vai na mesma linha de “Força Maior” – a vida quente, que vive em movimento no meio daquele mundo gelado – a trilha sonora, então, merece menção honrosa. Não só porque faz o “morde e assopra”, num papel tátil importante, como pelo repertório, que vai de Amazing Grace a Over the Rainbow. Mesmo sendo uma obra restrita ao circuito de cinema/arte e com atores e equipe de produção pouco conhecidos, o filme recebeu prêmios de destaque em alguns festivais. Abocanhou melhor ator para Henrik Rafaelsen no Amanda Awards (Noruega), Melhor filme no festival europeu de Seville, prêmio do grande júri no Festival de Sundance e prêmio da crítica no festival de Zurich.

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Apesar da pegada pesada o filme é engraçadíssimo. Pisa em territórios proibidos sem nos fazer sentir desconfortáveis, e faz pensar não só nas questões postas, mas nos seus processos de constituição e instituição de verdades, na criação de uma sociedade. É um projeto que pode ser definido como ousado com graça. Um filme que propõe a saída do engessamento do “certo” e do “errado” e diz, nas entrelinhas, que a decisão do que seremos pertence a cada um de nós, convidando o espectador a pensar na vida como um movimento perpétuo sem muros nem cercas, cada um sendo o que é. É um produto fino para paladares sofisticados. E lembrando Charles Chaplin, que dizia que brincando disse muitas verdades,  Anne Sewitsky faz o mesmo e  sem titubear. Genial!

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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