Love. (Drama/Romance); Elenco: Aomi Muyock, Karl Glusman, Klara Kristin; Direção: Gaspar Noé; França/Bélgica, 2015. 134 Min.
James Franco no documentário “Interior Leather Bar” (2013) questiona em conversas porque o cinema mostra todo tipo de violências: assassinatos, atropelamentos, espancamentos e estupros, mas tem pudores em falar sobre sexo. E por conta disso recria no documentário as cenas cortadas do filme “Parceiros da Noite”(1980) de William Friedkin. Lars Von Trier insuflou a sede de sexo na telona com o seu “Ninfomaníaca” (2013) e todos esperavam que o cineasta com fama de abusado burlasse as normas do circuito ‘normal’ e ali inserisse cenas de sexo explicito, o que não aconteceu. Em 2015, eis que surge um argentino naturalizado francês que traz para o circuito o filme “Love” que aborda a força com a qual uma paixão, um encantamento, devasta a alma e os pensamentos de um homem e cuja porta de acesso é o exercício da sexualidade. O longa de Gaspar Noé, traz o sexo como elemento primordial num relacionamento afetivo e mostra esse ajuste afeto/emoção/tesão sem cair na vulgaridade ou na gratuidade. O filme desse diretor que tem um estilo pesado, incômodo e totalmente visceral traz cenas de sexo explícito para o circuito ‘normal’ sem se transformar num filme pornô. E como se não bastasse em 3D. Para entender melhor, conhecer esse anjo da lama é fundamental.
Gaspar Noé é artista plástico, crítico de arte, cineasta, ator e escritor. Diretor de 18 filmes dentre curtas para cinema e TV, passou a ser conhecido com o curta-metragem “Carne” (1991), que versa sobre a carne como comida e a carne como força da natureza, pelo qual ganhou o prêmio da categoria no Festival de Cannes. A partir daí veio “Sozinho Contra Todos” (1998) que é uma continuação de “Carne” e que fala sobre incesto (pai/filha). Este filme foi premiado nos festivais de Cannes, Boston, Buenos Aires, Sarajevo e outros. Não que todos tenhamos enlouquecido, mas o forte de Gaspar Noé é a abordagem, ela é consistente, contextualizada e procedente, mesmo que incômoda. Depois desse show de prêmios com um tema transgressor, Gaspar filmou “irreversível” (2002), possivelmente, seu filme mais violento, até então, e tem como tema central um estupro. E a maestria está na forma de narrativa: de baixo para cima (do submundo para o mundo) e de trás para frente, como em “Amnésia” (2000) de Christopher Nolan, em que cada detalhe é importante e faz um giro de 360º entre o começo e o fim (começa e termina no mesmo lugar). Mas o melhor de Gaspar Noé ainda estaria por vir com “Enter de Void” (2009), um filme cuja abordagem é metafísica, contextualizado no mundo das drogas e que vai da morte à vida (nesse sentido). É mergulhado no universo da psicodelia e da lisergia, mistura esses sentidos à realidade e à não-realidade através da espiritualidade e filosofia com pitadas de podridão humana: incesto (irmão/irmã) e tragédia familiar. E que no meio disso tudo possui uma das cenas mais belas do cinema (na minha opinião): a de uma fecundação misturando o profano da lascívia ao sagrado, ao milagre da vida, com uma trilha sonora arrebatadora. E a partir daí está aberta a porta para “Love” (2015).
No filme que se proposita a falar de amor e do quanto essa potencia de afeto é poderosa e avassaladora, Gaspar conta a história de um estudante de cinema, Murphy (Karl Glusman) e da artista plástica Electra (Aomi Muyock). Um casal que tem uma boa química sexual costurada pelo afeto e que ousam realizar todas as suas fantasias para não cair no marasmo. São inteligentes, abertos para a vida e encaram tudo como experiência, tendo como âncora do relacionamento protegerem a relação de interferências externas e um ao outro. E é aí que o cristal se quebra. Não se sabe até onde o mito de Electra está imiscuído à trama, abrindo outras portas de análise para esta obra ousada de Gaspar Noé, que tem como costume ir do degradante à mais nobre das virtudes – o uso da inteligência – com perscrutações filosóficas. E cujo passeio vai de inferninhos com uma música incômoda e ensurdecedora ao céu com Johann Sebastian Bach. O que não falta na obra de Noé é paradoxo, numa brilhante analogia ao humano e ao caos.
Gaspar Noé viaja por “Love” com todos os ícones de sua assinatura: estroboscopia, cores fortes, movimentos de câmera giroscópicos, links com filmes anteriores e futuros – “Sozinho Contra Todos” está dentro de “Irreversível”; “Love” está dentro de “Enter The Void” – temas fortes, cenas chocantes. A Câmera de Noé é uma luva de boxe. As emoções são sempre as mais cruas e instintivas: a explosão de raiva, a atração pela transgressão, os impulsos e a irracionalidade. Noé mostra o selvagem em nós sem pedir licença, com argumentos simples e abordagens espetaculares. E sua preferência de registro é o submundo – o do mundo e o nosso, o interno. Gaspar Noé insere em “love” referências de peso, seja através de cartazes, cenas de trechos de filmes que aparecem em outros suportes nos takes ou em conversas, como: “M- O Vampiro de Dusseldorf” (1931); “2001 – Uma Odisseia no espaço” (1968); “Carne para Frankstein” (1973); “Saló ou 120 Dias de Sodoma” (1975) e “Sozinho Contra Todos” (1998). O filme foi indicado a Palma Queer do Festival de Cannes – Aomi Muyock é transmulher – outro atrativo do longa.
O filme “Love” é uma extensão das inquietações do cineasta em relação a essa avalanche perturbadora que nos invade quando estamos apaixonados e o faz com propriedade e com uma intensidade memoráveis. Gaspar Noé é isso, o prazer de incomodar, uma caixa de surpresas para o bem e para o mal, o cara que mexe com as transgressões adormecidas e o faz antagonicamente, junta o esculacho à nobreza, reverberando o que somos em nosso silêncio. Esse gênio mal lapidado consegue habitar a interseção entre o profano e o sagrado. É o Nelson Rodrigues da argentina com sotaque francês e é para quem gosta de perscrutar o humano sem preconceitos.
O jogo de “Onde está Wally?” é descobrir onde está a deixa do próximo filme do cineasta em “Love”. Façam suas apostas! Enquanto isso o longa estreia no circuito ‘normal’ e em salas selecionadíssimas. A classificação etária é 18 anos.
Obs: o filme “Enter The Void” (2009), que possivelmente, é o melhor do cineasta, até então, está disponível em plataformas online.
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