O Vendedor de Passados. (Drama); Elenco: Lázaro Ramos, Alinne Moraes, Odilon Wagner; Direção: Lula Buarque de Hollanda; Brasil, 2015.
“Tudo o que eu não invento é falso”
(Manoel de Barros)
Baseado no livro homônimo do escritor angolano José Eduardo Agualusa, “O vendedor de Passados” é a versão cinematográfica dirigida por Lula Buarque de Hollanda e estrelado por Lázaro Ramos e Alinne Moraes. É a história de um emaranhado de histórias, é a história da invenção de nós mesmos, e metaforicamente, da criação das nossas subjetividades. E que nos dá de presente o melhor dos patrimônios: a dúvida.
O filme é um passeio pelo cotidiano do estranho ofício de Vicente (Lázaro Ramos) que, usando de um arquivo homérico de fotografias antigas e digitais, de recursos multimídias e de criação gráfica, cria histórias para clientes que queiram mudar suas vidas, mais precisamente, seu passado. E assim criar um “novo futuro” ou, simplesmente, se reinventar para ser feliz. Até que um dia recebe a visita de Clara (Alinne Moraes) que lhe encomenda um passado novo, e aí a história roteirizada por Isabel Muniz começa para valer.
José Eduardo Agualusa, jornalista, escritor e cronista, membro da União de Escritores Angolanos e considerado um dos mais importantes escritores de língua portuguesa, em seu livro ” O Vendedor de Passados”, criou um contexto de reinvenção identitária da elite angolana – empresários, políticos, generais, a burguesia emergente etc… – com vistas a recomeçar uma nova vida após a guerra civil de angola, onde são fabricadas memórias, genealogias e passados felizes, numa linha crítica e satírica sobre a construção/criação de uma nova sociedade em torno da mentira e da hipocrisia. Isabel Muniz e Lula Buarque de Hollanda enxugam essa história até chegar a Vicente e Clara, num processo de criação de identidade, de fuga de um passado pouco interessante e da metáfora da “verdade” e do “real” como algo sem graça, sem emoção. E ainda, a necessidade do uso disso para ser aceito e admirado pelo outro. Num contexto em que o outro é tão importante que deixa-se de ser quem se é, a credita-se na própria mentira. Qualquer semelhança com os mecanismos da nossa criação social não é mera coincidência.
A trama é um processo de desconstrução do conceito de verdade e institucionalização da mentira (a nossa), aquela que somos nós para o outro, além de nos levar ao questionamento de nossa própria história de vida. Até que ponto a história que nos é dada, até que possamos tomar as rédeas dela e vive-la, não é invenção? O eixo norteador do roteiro é a criação de subjetividades. Nessa linha de invenções de si mesmo, os filmes “Narradores de Javé” (2003) de Eliane Caffé e “Jogo de Cena” (2007) de Eduardo Coutinho, nos remetem a importância da produção de um discurso sobre nós mesmos, nosso contexto e nosso entorno, em que o principal interlocutor a ser convencido, somos nós, e partir daí, o outro.
Isabel Muniz vem da experiência de roteiro para series de TV e novelas, como “Sob Nova Direção” e “Cheias de Charme”. Lula Buarque de Hollanda, mais afeito a documentários, embora tenha no currículo “Casseta & Planeta: a Taça do Mundo é nossa” (2003), Ganhou prêmios no Festival de Cinema de Recife (2000), e no San Francisco International Film Festival (2001) por “Pierre Fatumbi Verger: Mensageiro entre dois mundos” (2000) e, melhor documentário no festival de filmes português (Cineport-2009) por “O Mistério do Samba”(2008). “O Vendedor de Passados” foi indicado a melhor filme no festival de Lisboa. Também pudera, ancorado numa obra literária de língua portuguesa premiada pelo jornal inglês “Independent” como melhor livro de ficção estrangeira; com a fotografia de Toca Seabra de “Estômago” (2007); trilha sonora de Plínio Profeta de “O Palhaço” (2011); e tendo como brinde a canção de Caetano Veloso “Do You Know me”, era de se esperar.
Independente disso, “O Vendedor de Passados” é uma divagação sobre os mecanismos que utilizamos para a criação de nossas identidades. É um convite a reflexão, um caminhar de mãos dadas com Agualusa, Isabel Muniz e Lula Buarque deHollanda no processo de invenção de nós mesmos. E nesse imbróglio literato-cinematográfico, impossível não lembrar de Eduardo Galeano que disse: “Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias”. Um primor!
Deixar Um Comentário