Sangue Azul (Drama/Mistério). Elenco: Daniel Oliveira, Paulo César Pereio, Ruy Guerra, Sandra Coverloni, Matheus Nachtergaele, Rômulo Braga, Carolina Abras; Direção: Lírio Ferreira; Brasil, 2014. 120 Min.
“Não vemos que não vemos”
(Von Foerster)
Numa overdose de Daniel Oliveira, o circuito brasileiro de cinema recebe mais uma estreia, trata-se de “Sangue Azul” de Lírio Ferreira, que nos remete a misturas subjetivas de “La Strada” (1954) de Felinni, “Brincante” (2014) de Antônio Nóbrega e “O Segredo das Águas” (2014) de Naomi Kawase. E que tem a Ilha de Fernando de Noronha – pertencente ao arquipélago pernambucano – como personagem principal, fazendo uma viagem pela “Lenda do Pecado”, ovacionando a mitologia da ilha e a sua cultura local, ou seja, seu patrimônio imaterial e seus atributos naturais. A linha de costura de todos esses aspectos é a história de Zolah/Pedro, um filho da terra, que retorna com o circo para se apresentar na cidade depois de mais de década longe de sua família.
Na mesma linha narrativa de “O Segredo das Águas”, em que a dissertação sobre a vida é costurada pela morte, imiscuída aos poderes da natureza do arquipélago japonês, das tradições culturais e da condição humana, “Sangue Azul” costura a vida através do exercício da natureza humana dentro da natureza da ilha, e das vozes da mitologia cultural local como “A Lenda do Pecado”, que conta a história de dois gigantes, viventes primitivos da ilha, que copulavam diariamente e que, por isso, acabaram provocando a inveja de Zeus, que os petrificou. O filme nos mostra também o caminho de perpetuação das lendas através da oralidade, sendo ensinada aos mais jovens pelos mais velhos, no caso, por Mumbebo (Ruy Guerra) – o vigilante da ilha. São apresentados os monumentos naturais que contam a lenda do pecado – o Morro dos dois irmãos da praia da Cacimba do Padre, na alusão dos seios petrificados e o Morro do Pico, na alusão do falo petrificado dos gigantes copuladores que habitavam a ilha. Eles estão presentes em quase toda a película. E essa linha sexualizada é o caminho da narrativa que chama a natureza humana à natureza da ilha. Uma viagem fálica na história, nas metáforas e nos signos imagéticos, no comportamento mutante dos recém chegados à ilha, nos acirramentos de ânimos e na potencialização da sexualidade.
O fio narrativo é simples, um menino, Pedro (Daniel Oliveira) que fora dado por sua mãe, Rosa (Sandra Coverloni) a Kaleb (Paulo César Peréio), dono de um circo, e que volta anos depois, agora Zolah (nome artístico), maduro e modificado pela vida, para uma temporada de espetáculos circenses na ilha de Fernando de Noronha. Mas “o passado tem mania de cobrar fiado”, as dores são remexidas, os fatos revisitados e a ilha, com seu poder silencioso, passa a perturbar-lhes o equilíbrio e aquilo que instituímos como normas e regras de vida em sociedade, derrubando as cercas de limites que a natureza desconhece e de todos os dispositivos de vigilância, que são transgredidos.
O roteiro é escrito a seis mãos, por Lírio Ferreira de “Árido Movie” (2005), Felipe Barbosa de “Casa Grande” (2014) e Sérgio Oliveira de “Amor, Plástico e Barulho” (2013), traçando um painel de integração homem/natureza esplendoroso, misturando culturas, costumes e diferenças, convergindo para uma unidade com a natureza. Sendo que, desta vez, o poder troca de mãos, alí o homem não tenta domar a natureza, ela está livre, perfeita, poderosa, intocável e é ela quem domina o homem. O filme tem um plasticidade memorável, vai do P&B à cor intensa, com a paisagem estonteante da ilha pernambucana, façanha de Mário Pimentel Jr de “Cinema, Aspirinas & e Urubus” (2005). A trilha sonora é um capítulo à parte, assinada por Romário Meneses, mais conhecido como Pupillo, baterista e percursionista da banda Nação Zumbi, além de inserir composições próprias e em parcerias, faz de “Sangue Azul” uma salada divina de música clássica como: Romance para Piano de Dvorak, La Tempestade de Mare de Vivaldi; Musica Popular brasileira: A desconhecida de Fernando Mendes, Conselheiro de Batata e Paulo César Pinheiro; as internacionais: Rapsódia Cubana de Ernesto Lecuona, Deseperadamente na voz de Marina de La Riva; músicas da cultura local, e ainda acrescenta, na interpetação de Matheus Nachtergaele, Le Plat pays de Jacques Brel. Além de tudo isso, tem um figurino que viaja entre o espetáculo circense e a vida cotidiana da ilha. E tem ainda, um elenco de arrepiar: o cineasta Ruy Guerra como o sábio da ilha (Mumbebo), a ganhadora da palma de melhor atriz no Festival de Cannes 2008 Sandra Coverloni por “Linha de Passe” e Paulo César Peréio de “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1975). “Sangue Azul” foi premiado no Festival de Paulínea 2014 por melhor fotografia e melhor figurino; e no Festival do Rio com Melhor filme, melhor diretor e melhor ator coadjuvante para Rômulo Braga (Cangulo) na Première Brasil, e foi exibido no Festival de Berlim deste ano abrindo a mostra Panorama.
O Filme de Lírio Ferreira de “O homem que engarrafava Nuvens” (2009), “Cartola – Música para os olhos” (2007) e ” Árido Movie” (2005) é a história de o quanto a ilha impacta as pessoas que lá vivem e os que chegam. Uma odisseia antropológica sobre os instintos humanos e as imbricações sociais com suas transgressões, e sobre a quebra de estereótipos sob o comando de uma força maior, que é a da natureza; e o quanto enxergamos pela metade. “Sangue Azul” é uma belíssima história contada através da metáfora do mergulho, uma ode ao patrimônio cultural imaterial brasileiro sem esquecer que “O circo é uma ilha dentro da ilha” leia-se “O homem é uma ilha dentro da ilha que é a natureza”. Uma ode à vida!
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