‘Deslembro’ e o paradoxo da memória

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‘Deslembro’ e o paradoxo da memória

Por | 2019-06-19T16:04:10-03:00 19 de junho de 2019|Crítica Cinematográfica|0 Comentários

Deslembro (Unremember) (Drama); Elenco: Jeanne Boudier; Jesuíta Barbosa, Hugo Abranches, Eliane Giardini; Direção: Flávia Castro; Brasil, 2018. 96 Min.

Como falar sobre o quanto os tentáculos da repressão política é capaz de atingir a vida de pessoas que estavam a margem de uma atividade política engajada? Como falar das consequências de abusos e de ressonâncias pessoais desse momento histórico no futuro das pessoas? Alguns cineastas descobriram caminhos que mostram esses tentáculos e essas consequências. Roberto Bahar e Almudena Carracedo em “O Silencio dos Outros” (2018); Pawel Pawlikoswski em “Ida” (2013); Cao Hamburger em ” O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2006). Agora, é a vez de Flávia Castro com “Deslembro” que versa sobre as reverberações do desaparecimento de um pai, preso político do regime militar brasileiro, na vida de sua filha quando ainda era um bebê. Através de flashes de memórias infantis, que a própria fisiologia vai apagando ao longo do amadurecimento, a diretora e roteirista mostra as reverberações dessas lembranças, aparentemente sem sentido, na vida de uma adolescente.

Joana (Jeanne Boudier) é uma adolescente exilada na França que retorna com a família ao Brasil depois da lei da anistia (1979). Filha de um militante desaparecido e uma mãe ex-militante, com um padrasto militante do M.I.R (movimento de esquerda revolucionária do Chile). O longa passeia pelo cotidiano ordinário de uma adolescente comum atravessados por essas questões. Desenha um painel da influência dessas redes e dos acontecimentos da época na vida de Joana, da identidade linguística dos filhos às burocracias da escola; nas relações com os amigos, consigo mesmo e com os familiares.

A obra cinematográfica serve como um fomento de memória versando sobre o processo de esquecimento fisiológico e de marcas na alma, advindos de um regimes de exceção. Remete-nos ao filme “Trago Comigo” (2013) de Tatá Amaral cujo função e objetivo era relembrar para não repetir. Abordando o mesmo cerne de questão – a memória – como um instrumento explicativo do que foi a ditadura brasileira para aqueles que não a haviam vivido. Fazendo um passeio pelos bloqueios e esquecimentos que a mente produz para se proteger, conectando-se apropriadamente com “Deslembro” cujo processo natural de extinção da memória que o cérebro vai promovendo para registrar novas experiências, traz à luz algo que não se quer saber.

Flávia Castro que dirigiu e roteirizou o longa é conhecida pelo documentário “Diário de Uma busca” (2010) e pela direção de um dos episódios do longa produzido por Gael Garcia Bernal “El Aula Vacia” (2015). A direção de arte ficou por conta de Ana Paula Cardoso, diretora de arte do filme “Gabriel e a Montanha” (2017) e produtora de designer do filme “Casa Grande” (2014); que mostra o Rio de Janeiro da Década de 80. Tudo no longa tem boa qualidade: as músicas, o painel da luta cotidiana, o exercício de táticas e estratégias de sobrevivência em tempos sombrios. “Deslembro” abocanhou os prêmio da crítica no Festival de Biarritz; do público e o FIPRESCI no Festival do Rio.

Além de fomento de memória, “Deslembro” é uma ode ao seguir em frente carregando todas as dores como experiência e administrando-a, numa lição de que a vida se renova e que não cabe arrependimentos e desvios covardes. Para cinéfilos politizados, que curtem uma produção nacional, é prato cheio.

Sobre o Autor:

Editora do site Cinema & Movimento e crítica cinematográfica

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