Os Iniciados

Os Iniciados

Por | 2018-06-16T19:56:05-03:00 20 de janeiro de 2018|Análise cinematográfica|0 Comentários

Os Iniciados (Inxeba/The Wound) (Drama/Romance); Elenco: Nakhane Touré, Bongile Montsai, Niza Jay, Thobani Mselini, Gabriel Mini; Direção: John Trengove; África do Sul/Alemanha/Holanda/França, 2017. 88  Min.

O continente africano tem uma história muito particular com o cinema. Tendo sua proeminência e fomento a partir da década de 60 do século XX, a África subsaariana tem muito do que se orgulhar. Primeiro, pelas diferenciadas vertentes de abordagem: a das tradições e a da modernidade. Segundo, pelas diferentes gramáticas cinematográficas que constam na trajetória da História do cinema africano, tendo como referência, em relação à abordagem sobre a  modernidade o cinema nigeriano, a ‘Nollywood’, a terceira maior industria cinematográfica do planeta (pasmem!). Quanto as gramática cinematográficas diferentes temos o cinema do sul-africano Neil Blomkamp de “Chappie” (2015) que tem uma pegada americana e uma abordagem moderna. O de Abderrahmane Sissako de “Timbuktu” (2014) que tem uma forma de filmagem e de narrativa mais típica do continente, mais condizente, digamos mais ‘caseira’ sem tanta tecnologia e até a sua velocidade é mais bucólica. O de Mamadou Cissé  de “Devoir de Mémoire” (2015) que versa  mais sobre tradições e imbricações com a modernidade, semelhante ao cinema de azerbaijano Shamil Aliev em seu filme “Steppe Man” (2012) em relação a abordagem. Mas, o filme do sul-africano John Trengove em sua estreia na ficção é uma mistura de aspectos. A gramática cinematográfica é típica dos países africanos, sua abordagem é moderna e seus questionamentos são ousados e viscerais. Com “Os Iniciados” Trengove chafurda na interseção entre a tradição e a modernidade abordando a natureza humana instintiva e hipocrisia social. Feito esse que está gerando protesto na África do Sul.

Para entendermos melhor “Inxeba” (no original) é interessante  nos atermos sobre de quem se fala e do que. Isso, para termos o mínimo de probabilidade de entendermos com propriedade e termos a possibilidade de divagarmos sobre o assunto, evitando equívocos, já que se trata  de outra cultura sendo vista pelos olhos da nossa. O filme se contextualiza no ritual masculino de iniciação – o Ulwaluko – da tribo Xhosa que vive no sudoeste da África do Sul. Que têm uma cultura de adivinhos, curandeiros, profetas e ervanários e, ainda hoje, mantém a tradição oral. Ou seja, sua História e seus registros são passados de geração a geração através das histórias que se contam. Logo, a palavra, o que se fala, o que se diz é de suma importância e tem um poder exponencial. Esse fator é importantíssimo para entendermos o desfecho do enredo.

O roteiro conta a história do guia de iniciados Xolani (Nakhane Touré) que recebe um iniciado de Johannesburg, Kwanda (Niza Jay), cujos pais o percebem com orientação homoafetiva e o colocam para ser iniciado para se tornar um  ‘homem’ na cultura  da tribo Xhosa. Nesse aspecto se mistura a tradição e a modernidade. A questão é que dois guias dos iniciados são gays de forma escondida (não se pode falar sobre o assunto), Xolani e Vija (Bongile Mantsai). Kwanda descobre ao romance dos dois e, como jovem que é, sem os valores da tradição e sem a menor noção deles não inspira confiança em guardar o segredo. A situação exposta no filme é sobre qual é o lugar desses indivíduos naquela sociedade e naquele espaço e tempo. Com uma abordagem amiúde que privilegia os diálogos em detalhes, o diretor  e roteirista John Trengove faz um passeio pelo conflito interno entre os dois guias, os questionamentos contundentes e sem amortecimento, típico dos jovens e, como  as sociedades – tradicional e moderna –  percebem e recebem essas questões.

O filme de John Trengove da série de TV “Hopeville” (2010) e que, também, produziu “Eles Só Usam Black Tie” (2015) é corajoso e desbravador de horizontes, fomentando o debate. O que já está ‘causando’ na África do Sul. Apesar da técnica bem simples e de uma produção modesta, seu viés é poderoso, acirra os ânimos e abocanhou prêmios mundo afora.  Só de  melhor filme foram nove (Associação Americana de Críticos; Valencia International Film Festival; Durban Gay & Lesbian Film Festival; San Francisco International LGBTQ Film Festival; Festival de Londres; Festival Internacional de Lisboa de Cinema Queer; Torino International Film Festival; World Cinema Amsterdam) e ainda outros, nas categorias de melhor narrativa, melhor diretor sul-africano, melhor roteiro, Grande prêmios novos talentos, grande prêmio do Juri no Sundance Film Festival,  e tantos outros, num total de 18. Porém uma das maiores surpresas é estar na Short-list do Oscar 2018. Só de ter chegado até aí já é uma brilhante jornada para um filme módico vindo de um país que não tem cultura cinematográfica estabelecida  e que está se posicionando nesse nicho agora.

Para encerrar,”The Wound” (título comercial que dá visibilidade internacional) é um tiro na hipocrisia. É um filme detalhista através de seus diálogos, das situações que apresenta e conexões ente elas. Portanto, seleciona público. Ficam à vontade com ele, o público LGBT, os antropólogos, os sociólogos e os interessados pelos temas em questão.  Pelo próprio histórico do cinema sul-africano e pela competitividade entre os candidatos à estatueta dourada de Hollywood, “Os Iniciados” tem poucas chances de estar na lista final. Mas se estiver é sinal de que a quebra de paradigmas está moda e vem com tudo. Visceral!

Confira as entrevistas do ator Nakhane Touré e do diretor John Trengove.
 

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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