Maria Madalena

Por | 2018-06-16T19:51:20-03:00 15 de março de 2018|Resenha cinematográfica|0 Comentários

Maria Madalena (Mary Magdalene) (Drama); Elenco: Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim; Direção: Garth Davis,; Reino Unido/Austrália, 2018. 120 Min.

Em 541 d. c,  o papado da época considerou oficialmente Maria Madalena como prostituta. Estudos posteriores apontavam que a pecha não procedia. Mas, como destituir a autoridade de uma instituição que ‘legisla’ sobre seu objeto de uso, exercício e existência? Somente com os instrumentos de autoridade da mesma instituição, principalmente em se tratando de um nicho tão específico quanto o da religião. Em 2016 o Papa Francisco reconheceu, oficialmente, Maria Madalena como um dos discípulos de Jesus Cristo. O que Garth Davis faz é dirigir um filme roteirizado por duas mulheres que apresenta a vida de Maria Madalena e sua jornada junto a seu mestre e mentor de acordo com as pesquisas. “Maria Madalena” aborda de forma suave e doce as agruras sofridas pela discípula numa época em que as mulheres  e as crianças não eram contadas em censos, que não podiam frequentar os templos e que estavam à margem da sociedade e, quiçá, da existência. E faz um passeio competente de desagravo a essa figura vilipendiada por mais de 14 séculos.

 

Situado no ano de 33 da era comum, o roteiro apresenta a família de Maria Madalena (Rooney Mara), sua personalidade, os dogmas da época e os costumes daquele tempo, além de passear pela relação dos discípulos com ela e de Jesus com todos. Não se detém nos aspectos da fé, embora os apresente, como: a ressurreição de Lázaro, a cura de um estrábico, a entrada em Jerusalém e a revolta no templo. Mas traz a importância  do papel de Maria Madalena com relação ao alcance da mensagem de Jesus junto às mulheres e as lógicas perceptivas de Maria Madalena e de Judas Iscariotes (Thar Rahim) – o que é um achado -. A história é centrada nela e é cuidadosa em mostrar a sintonia na relação com Jesus Cristo e não insinua nada além de devoção e uma extrema admiração. E funciona pela sua suavidade e conexões com o que se sabe da história do judeu que balançou os alicerces políticos de sua época.

 

As roteiristas: Helen Edmundson, oriunda de filmes de TV e Philippa Goslett, que está em seu primeiro roteiro para longa-metragem, foram sutis, sensíveis e, especialmente, inteligentes, quando mostraram uma mulher que não se encaixava nos ditames de uma época (talvez por isso boicotada) e que, contra todos os prognósticos daquele tempo teve um papel importante num pedaço da História da humanidade. Sem puxar a sardinha para a religião, traçam um perfil admirável e leve de alguém, até então, desconhecida em sua relevância. Já Garth Davis, conhecido por “Lion: Uma Jornada Para Casa” (2017), merece reverências pela sensibilidade ao dirigir Rooney Mara no papel de Maria Madalena apresentando uma mulher injustiçada, sedenta por aprendizado e humilde, no sentido de ser desprovida de vaidades egóicas e rompantes; e ainda a Joaquin Phoenix no papel de Jesus Cristo, apresentando um indivíduo introspectivo, compenetrado e espiritualizado e mais, o quanto, pela lógica, aqueles milagres exigiam de seu arcabouço físico humano.

 

Isso tudo nos faz lembrar obras cinematográficas que já abordaram a vida de Jesus Cristo em  aspectos diferentes e tão fora da caixinha em relação aos filmes tradicionais da quaresma, como: “A Última Tentação de Cristo” (1998) de Martin Scorsese baseado no livro de Nikos Kasantzakis enfatizando a condição humana, ainda sob a égide do vilipêndio de Maria Madalena; ou “A paixão de Cristo”(2004) dirigido por Mel Gibson que se detém no seu sofrimento carnal e na sua dor corporal enquanto humano exposto a violências e agressões; também, “Últimos Dias no Deserto” (2015) estrelado por Ewan McGregor em que apresenta as possibilidades da experiência espiritual nos 40 dias de jejum no deserto; Ou ainda, “Ressurreição” (2016) que mostra o efeito da mensagem do Cristo sobre um soldado romano após a sua morte. Todas essas obras se debruçam sobre âmbitos diferentes de uma mesma história e de uma perspectiva nada tradicional. Se toda a História é a versão dos vencedores, vale a pena desconstruir isso. E “Maria Madalena” faz isso muito bem.

 

Outros destaques, além das atuações de Rooney Mara de “Carol” (2015) e “De Canção em Canção” (2017); e Joaquin Phoenix de “Ela” (2014) e “Homem Irracional” (2015) são a trilha sonora de Hildur Guonadóttir, que fez parte  do departamento de musica de “A Chegada” (2016) e o saudoso Jóhann Jóhannson de “A Teoria de Tudo” (2015) que é um requiém rústico das emoções que afloram durante a exibição e a fotografia seca e fria de Greig Fraser de “Foxcatcher” (2014). Sem esquecer da direção de arte magnífica de Cristina Onori da série de TV “Roma” e do designer de produção de Fiona Crombi de “Macbeth: Ambição e Guerra” (2015). “Maria Madalena” é  um filme sobre uma mulher que tem nos pilares que desenham sua produção cinematográfica mulheres muito competentes.

 

Como é de costume, toda quaresma temos, pelo menos, uma produção voltada para a história de Jesus Cristo. Os seus vieses cada vez mais diferenciados e livres nos mostram outros olhares e perspectivas que conseguem se apresentar sem macular a fé nem os dogmas religiosos, se colocando sobre o nicho da História. A forma com a qual se decidiu contar essa história com olhares e  silêncios é para lá de significativa, é magnífica. “Maria Madalena” é um baita desagravo a essa mulher que fez muita diferença  sem ninguém saber. O filme é uma ode ao poder e a importância das mulheres no caminhar da História da humanidade. O objetivo não é evangelização e sim fazer pensar de forma filosófica e histórica sobre esses dois personagens tão importantes para a História do cristianismo  de forma inteligente, e consegue. O longa é digno de ovações. Merece ser visto e constar na videoteca de casa como um artefato cultural que registra esse reconhecimento tardio para as massas, como o é a religião. Clap, Clap, Clap!!!……

 

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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