Trem noturno para Lisboa

Por | 2014-01-20T19:03:46-03:00 20 de janeiro de 2014|Adaptação: Literatura/cinema, Resenha cinematográfica|0 Comentários

Trem Noturno para Lisboa. ( Night Train to Lisbon); (Romance/mistério). Elenco: Jeremy Irons, Mélanie Laurent, Jack Huston. Diretor: Bille August. Alemanha/Suiça/Portugal, 2013. 111 Min.

O que é um bom filme? É uma pergunta impossível de ser respondida, pois vai de acordo com o espectador, seu repertório, suas experiências e como somos multifacetados, não dá para fazer generalizações. Mas o Filme Trem noturno para Lisboa ( Bille August, 2013) chega perto de um montante respeitável de espectadores, dos que gostam de romance, de história, dos que refletem sobre a solidão, sobre a aventura da existência. Quem presta atenção na vida se prende à película de August.

O filme é uma adaptação do romance homônimo de Pascal Mercier, pseudônimo de Peter Bieri, um escritor e filósofo suiço, com uma trajetória interesantíssima. (confira!). O livro foi uma obra muito bem recebida no mundo inteiro, com mais de 2,5 milhões de exemplares vendidos e com as melhores críticas possíveis, de isabel Allende ao le Monde. Trem noturno para Lisboa é uma história arrebatadora, uma viagem ao que somos.

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” Se é verdade que apenas podemos viver uma parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com resto?” (MERCIER,2013;25)

A adaptação conta a história de um professor de línguas antigas, um filólogo, erudito, trancafiado em si mesmo e que, a partir de um encontro trágico e inusitado, empreende uma saga à procura de informações sobre a vida do autor de um livro, que pelas palavras e fotografia, lhe transmitiram vida numa intensidade tal que ele sentiu necessidade de mapear a existência e o processo desse autor. E sai de Berna, na Suiça, para Lisboa à procura dos rastros de Amadeu do Prado.

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“(…) porque aqueles que não viajam não podem expandir exteriormente, também não conseguem se ampliar interiormente, (….) e assim não tem a possibilidade de empreender amplas excursões para dentro de si mesmas e descobrir quem ou o quê do outro poderiam ter sido” (p. 253)

O livro é uma radiografia do autoconhecimento, dos processos de descobertas internas e questionamentos, quase que infantis, sobre si mesmo, sem vieses, sem acobertamentos. Dividido em quatro partes – a partida, o encontro, a tentativa e o regresso – em cada uma delas a epopeia intrínseca de Raimund Gregorius à procura  de uma nova sintonia com a vida. O poeta Amadeu do Prado, autor das reflexões e também médico, um meticuloso observador e sorvedouro de vida – assim descrito – é o cicerone nessa empreitada.

À medida que Gregorius, vulgarmente chamado de Mundus, pelos alunos, e de Papiro, pelos colegas, vai se misturando à vida de Amadeu do Prado, ele também muda. Para quem se incomodava com as mudanças do mundo, é uma revolução. A primeira providência foi a troca de óculos, numa alusão à nova forma de ver o mundo, a vida, daí em diante…embora volta e meia ele colocasse os antigos.

“o que estava emergindo à superfície dentro dele (…) para fora a lucidez era enorme, mas para dentro ainda não” (p.175)

A obra aborda o período salazarista, em portugal, a ditadura, as torturas, o tarrafal e  é embricada  com a história de um homem que tinha seu próprio código e exalava ética, firmeza, sensibilidade e sensatez.

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” Sabe de uma coisa, pensar é segunda coisa mais bonita, a mais bonita é a poesia. Se houvesse o pensamento político e a poesia pensante, seria o paraíso” (p.352)

O trabalho do diretor Bille August, conhecido por A casa dos espíritos (1993) Goodbye Bafana (2007) , que se trata da história de Nelson Mandela e com o qual ganhou o Berlin International Film Award 2007, dentre outros prêmios. (Veja!), foi fazer a transposição da linguagem literária para linguagem cinematográfica. Missão nada fácil, quando se trata de uma obra tão subjetiva. August se apoiou nos principais pilares da obra: a tentativa de suicídio da desconhecida, a família Amadeu do Prado, os óculos, a saga da procura dos amigos de Amadeu, os indícios da mudança e deixou o resto para espectador.

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“O verdadeiro encenador da vida é o acaso – um encenador cheio de crueldade, misericórdia e encanto cativante (…)” (p.102)

Jeremy Irons  ganhador do Oscar de melhor ator em 1991 por O reverso da fortuna (Barbet Schroeder) também conhecido por O homem da máscara de Ferro(1998),  O mercador de Veneza (2004) e Dezesseis Luas (2013), e ainda, após interpretar um escritor que corre atrás de sua autoria como The old man em As palavras (Brian Klugman, Lee Sternthal, 2012) ele faz o papel inverso correndo atrás do escritor real vestido de Raimund Gregorius. O filme é um passeio pelas ladeira e vielas de Portugal e uma viagem de calmaria pelo Rio Tejo, além de ser uma boa aula de história,  uma excelente reflexão sobre o que fazemos conosco mesmos ao longo da vida. E ainda tem a participação do venerável Cristopher Lee ( father Bartolomeu),  O Saruman de Senhor dos anéis (Peter Jackson, 2001/2002); Count Dooku/ Dark Tyranus de Star Wars (George Lucas, 2002/2005).

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” porque ele se sentia um analfabeto quando se tratava de proximidade e distância” (p.258)

O bom da questão da adaptação da literatura para o cinema é que a gente sabe o que o diretor tinha que dizer imageticamente, para manter o cerne da questão da história, está lá no livro, E a brincadeira de descobrir como foram usados os subterfúgios, é um jogo de pique-esconde interessantíssimo. Brincar com o sucesso ou não da tentativa é um bom exercício. E Bille August, além de ser preciso e bem sucedido na transposição do que “deveria dizer” , ainda escolheu bem os pilares da história nos quais embasou a adaptação, juntamente com Pascal Mercier ( autor do livro), Greg Latter (goodbye Bafana, 2007) e Ulrich Herrmann ( Uma mulher contra Hitler, 2005) .

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“A paciência era seu ponto forte. Uma paciência de pedra muda” (p.321)

Ler o livro e ver o filme é um exercício de prazer, no caso de Trem noturno para Lisboa. Mas o contrário também está valendo, porque quem  sai do cinema se envolve tanto com a história, que sente a necessidade de ler o livro, só para a história acabar mais devagar.

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” A imaginação é o nosso último santuário” (p.225)

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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