Lucy

Por | 2018-06-16T23:34:32-03:00 30 de agosto de 2014|Análise cinematográfica|0 Comentários

Lucy. (ação/ficção científica); Elenco: Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Choi  Min-sik , Amr Waked; Diretor: Luc Besson. França, 2014. 89 Min.

Nota: Este texto contém spoilers

Uma das maiores dificuldades de se falar sobre um filme, seus aspectos e possíveis fabulações inerentes ao enredo, é precisar o que se quer dizer a cerca do entendimento do mesmo, sem o uso de cenas como exemplo, os famosos spoilers. É um exercício e tanto, que confesso, como me propus a uma análise, ainda não foi dessa vez que consegui. Mas também pudera, Luc Besson  encheu o filme “Lucy” com significações imagéticas a partir da mise-en-scène, referências históricas, antropológicas, matemáticas e de física quântica numa salada interessante e que possibilita viagens fantásticas.

inews_lucy_poster_09jun14 O filme tem como eixo condutor a possibilidade de acesso, do ser humano, de cem por cento de sua capacidade cognitiva. Com meandros de fantasia alavancados por conceitos científicos da física quântica, como múltiplas realidades e  multiverso, a evolução do homem à luz da antropologia, o conceito de ondas de frequência da física mecânica e matematização da realidade numa conta que nunca fecha, a teoria do caos,  o conceito de autopoiesis da biologia; o ter e o ser da filosofia, o macrocosmo e microcosmo, as artes e suas representações pictóricas de tempo e, ainda, as ressignifica.  Só para falar das principais nuances abordadas no filme. Besson traz a noção parca desses conceitos para os pebleus em forma de blockbuster, num exacerbo de imaginação de dá gosto, no mais americano dos filmes franceses, e começando por aí já temos uma bela contradição. Isso tudo  de uma maneira imagética  divertida e surreal.

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Tudo se inicia com dois seres humanos, no nível dez por cento, Lucy (Scarlett Johansson) e seu companheiro Richard (Pilou Asbaek) caindo numa armadilha. Traçando uma analogia entre animais e humanos como presa e predador, em pleno domínio dos sentidos, insinuado  imageticamente, com cortes para planos de pradaria,  animais à espreita e a própria composição da mise-en-scène com as roupas que vestem os personagens. Após se tornar presa fácil, Lucy é aliciada para transportar a substância CPH4 – nome fictício de um hormônio produzido por grávidas. O composto é altamente concentrado e é disposto no interior de seu estômago. A brincadeira começa aí, o pacote se rompe e inicia-se o processo/jornada de evolução cognitiva de Lucy por osmose.

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A história é entrecortada pelo princípio antropológico da ideia  de evolução.  Nos é  apresentada a primeira hominídeo fêmea, “LUCY” – um fóssil de 3,2 milhões de anos encontrado na Etiópia em 1974 pelo arqueólogo Donald Johanson – e a partir dessa ideia de evolução que está completa, a do corpo, da fisiologia, da integração com o meio, através da primeira mulher erecta “homo sapiens” , somos induzidos a fazer uma analogia com a  primeira mulher a evoluir no, aspecto em que há defasagem, a cognição. Partindo do pressuposto (irreal)  de que usamos somente dez por cento de nossa capacidade de inteligência, e das ilações sobre o caminho a ser percorrido nesta evolução, sobre as potencialidades a serem desenvolvidas e  o processo de como isso, possivelmente, se daria, Luc Besson nos leva a um parque de diversões  com Lucy (Scarlett Johansson), a primeira mulher a usar cem porcento de sua capacidade cognitiva. Numa analogia e tanto.

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Reconstituição de LUCY primeira primata fêmea encontrada na Etiópia em 1974. Exposta no Museu Nacional de Antropologia da cidade do México

Para desenvolver tamanha argumentação sem cair em esparrelas gritantes demais, pois falar de física quântica em imagens já é doideira suficiente, Luc Besson foi conversar com cientistas da cognição para elaborar a história, que diz estar gestando a mais de dez anos, e ainda, fala sobre todo o processo de preparo do trabalho de direção com os atores de “Lucy”, em entrevista. (Aqui!). Sobre a física quântica, a explosão do tempo, sua relatividade e queda das barreiras de eras, que o humano primitivo impôs é imageticamente hilário, mas possivelmente, foi feito para sê-lo. Ninguém aguentaria tantos conceitos trabalhados com sisudez num espaço que foi feito para serem desauratizados de seu lugar sagrado, o clube científico com sua linguagem blindada. A noção de microcosmo e macrocosmo, a célula que contém o universo, e é contida por ele e ambos funcionam fisiologicamente no mesmo sentido e direção, a de expansão. Numa analogia não discursiva  belíssima.

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A constituição do universo tem o mesmo caminhar e sua linguagem é a matemática, a unidade de medida é o tempo. As ondas de frequências que se afinam e invadem o espaço de outros âmbitos, o eletrônico, o eletromagnético, as ondas de pensamento, frequência de energia capaz de interferir em qualquer campo energético.  A escala de evolução é  porcentual, porém preconizando a inexatidão, a quebra das barreiras do tempo, a existência de vários períodos juntos, o que preconiza a física quântica, que mesmo sendo chamada de pseudociência para alguns, é coisa séria para outros, que o diga Heisenberg (prêmio Nobel de física). A relatividade da realidade, segundo o argumento, está na dependência da evolução cognitiva. O que leva a revolução e à transcendência. As teorias científica modernas mais bizarras são ludicizadas através da imagem numa estratégia de explicação divertida e  acessível para quem tem essas redes de conhecimento.

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A filosofia está presente em tudo, mas muito principalmente, na pergunta inicial, “Vivemos para ter (…) criamos a vida  e depois não sabemos o que fazer com ela.  O que fazemos com a nossa vida? ”  indagação essa, que ousadamente é respondida no final. Numa linha de coerência com o que foi apresentado como argumento digna de aplausos. O acúmulo de conhecimento, já que se fala de cognição, é posto como  um meio de trancendência e para ser compartilhado e não como patrimônio particular. Os  sentidos primitivos, representados, especialmente, pela dor  – que carrega em si todos os sentidos básicos –  são sublimados. Não são esnobados, são desnecessários. A vida é representada como aquisição e troca de conhecimentos e potencialidades.

Lucy-Movie-Collage-7-23-14A criatividade na imagetização de uma suposta autopoiésis, – independência celular e autogestão de si mesma – com a ajuda de efeitos especiais, o famoso CGI,  é muito criativa, mãos que se duplicam, cabelos que mudam de cor e crescem do nada, e células que decidem se autofagocitar, na cena do avião. Tudo trazido de forma, não a dar aulas, mas divertir o grande público, e fomentar aos teóricos de plantão a visão do que postulam como teoria. Um delírio inteligente, que parece gratuito mas tem a ver com o que se propõe.

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Nesse festival de imagens de conceitos e de uma história bem inventiva ainda temos a trilha sonora de Eric Serra com inspirações em trechos de “God’s Whisper” de Raury Tullis e  “Requiem Aeternum” de Wolfgang Amadeus Mozart, num festa para os sentidos que potencializa a história. Dirigido  e roteirizado por Luc Besson de “O quinto elemento” (1997) obra que lhe deu o Cesar 1998 de melhor diretor.  “Lucy”mistura um pouco de “Teorema zero” (Terry Gilliam) no que concerne a teoria do caos e “Transcendence – a revolução” (Wally Pfister) no que diz respeito ao objetivo da evolução. Scarlett Johansson de “Ela” e “Sob a pele” fecha a tampa da temporada 2014 com chave de ouro. Já o oscarizado Morgan Freeman de  “Transcendence” esteve  onipresente este ano participando de nada mais, nada menos que oito produções dentre longas e curtas. “Lucy” conta também com o ator sul coreano Choi Min-sik (Mr Jang) conhecido por “Oldboy” de Chan-wook Park. E finalmente, Amr Waked ( Pierre Del Rio)  ator egípcio premiado em festivais e conhecido por “Syriana – a indústria do petróleo” de Stephen Gaghan, que só pelos olhos já vale a  atuação (para quem tem dez por cento de inteligência. rsrsrs).

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A imagetização de tudo isso, para os olhos dos desprovidos das noções dos conceitos transformam o filme numa belíssima obra de ação e aventura. Uma salada que mistura das artes marciais a colisões de carros e muita adrenalina. Para quem tem as redes dos conceitos ou das noções deles é um desfile de modos de imaginar o abstrato. Pois tem estilo didático-imagético sobre os conceitos que aborda. E o faz de forma leve e  divertida o que tira o carma pesadão das teorias científicas e filosóficas. Enfim, é um filme inteligente que agrada a uma diversidade considerável de público, aos gostam de ação, aos que curtem ficção científica, aos que se identificam com filosofia e aos cinéfilos que gostam de comparar filmografias, pois é um prato cheio, em relação aos últimos filmes de Scarlett Johansson e também á filmografia do próprio Luc Besson. Tem humor, ação, reflexão e muita beleza. Mas pode ser muito mais do que isso ou muito menos. Afinal, como dizia Heinz Von Foerster  “ninguém vê o mesmo vermelho“. Vá ao cinema e veja seu próprio filme.

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Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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  1. Renata Cortes 30 de janeiro de 2018 em 12:10 - Responder

    Excelente post, obrigado, esse filme ancho que é bom, o trabalho de Morgan Freeman é inigualável. Quando vi o elenco de Despedida em grande estilo, automaticamente escrevi nos filmes que deveria ver porque o elenco é realmente de grande qualidade, ancho que é umo dos mais divertidos filmes com Morgan Freemané um dos meus preferidos, por que sempre leva o seu personagem ao nível mais alto da interpretação, seu trabalho é dos melhores. Eu ri muito

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