Doutor Estranho (Doctor Strange) (Ação/Aventura/Fantasia); Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Rachel McAdams, Tilda Swinton; Direção: Scott Derrickson; USA, 2016. 115 Min.
Fechando a tampa da temporada 2016 da expansão do universo de super-heróis das HQs para o cinema, “Doutor Estranho” de Scott Derrickson conta a história do Dr. Estephen Strange, um neurocirurgião prepotente que sofre um acidente de carro e fica com os movimento das mãos comprometidos, impossibilitando-o de exercer a profissão. Nesse contexto a personagem mergulha numa saga de autoconhecimento e busca pela perfeição espiritual com o objetivo de cura. A linha de abordagem, apesar das múltiplas realidades, não é científica é espiritual
Nada demais, se não fosse uma adaptação dos quadrinhos, mídia que tem sua importância sociológica pelo que apresenta em suas produções em relação a processos sociais nos quais estão inseridas. A década do surgimento do Doutor Estranho é a de 60, mais especificamente, 1963, em que os movimentos pacifistas se manifestavam e dentre eles o movimento Hippie que pregava a espiritualidade, abraçando aspectos das religiões orientais e nativas da América do norte, a comunhão com a natureza e consigo mesmo, e tal. Logo, um personagem que fosse guardião dessa dimensão espiritualizada caiu como uma luva para o momento. Para não parecer exagero, acompanhar as forças que movimentaram as eras dos quadrinhos se faz necessário.
As HQs existem desde o século XIX e suas influências sempre foram os contextos nos quais estavam mergulhadas, como tudo o que fazemos. Em primeiro momento, em forma de tiras (1833). A primeira publicação inspirada no formato da revista inglesa Punch em 1841. Em seguida foi se aperfeiçoando e surgiu o protótipo das Comic Books ou gibis com “The Yellow Kid in McFadden’s” (1897), todas em Preto e Branco. A primeira Comic Book colorida foi “The Blackberries” (1901),e a partir de 1922 suas tiragens passaram a ser mensais e ficou mais fácil verificar suas influências. Até então, eram relatos de cotidianos que se identificasse com o público que as liam, porém, no final da década de 20 surgem as primeiras histórias de aventuras, como “Tarzan” e “Buck Rogers”. A partir de Famous Funnies: A Carnival of Comics” (1934) se instituiu os quadrinhos como uma nova mídia impressa de massa. E se iniciam as eras dos quadrinhos designadas pelos seu sucesso de público, que por sua vez, era alavancado pela harmonia com o contexto social, histórico e político. Nada melhor do que a Segunda Guerra Mundial para provar isso. Pois foi quando surgiram os super-heróis como Superman e Batman, no fomento ao heroísmo e ao patriotismo, no convencimento da invencibilidade e da necessidade de fazer uma população acreditar nisso. Esse momento foi considerado a Era de Ouro dos quadrinhos. Logo em seguida, ao final da Segunda Guerra surgem as histórias de humor juvenil, os animais de Walt Disney, o faroeste, o romance, a ficção-científica, as paródias e os quadrinhos de terror (voltados para os adultos com um ‘q’ de sexualização e sensualidade), essa chamada à boca pequena de era atômica. Neste contexto entram a Psiquiatria e Educação promovendo uma verdadeira caça às bruxas, postulando conteúdos subversivos. É a partir desse período que se inicia a discriminação dos quadrinhos nas escolas. Criado um selo de qualidade para produções ‘sérias’ os super-heróis voltam com toda força nas décadas de 50 e 60, dessa vez mais humanizados e com relativa complexidade. Essa nova linha chama atenção dos estudantes universitários e se inicia a era Nerd. Essa é considerada a Era de Prata das HQs e é dessa leva “Doutor Estranho” que imbuído de toda uma necessidade de enlevo espiritual e de negação da arrogância, inclusive de questionar a epistemologia à qual sempre fora devotado e na qual se criou como indivíduo, forjando sua identidade, para se desconstruir e acessar outro tipo de poder.
Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) é o mago supremo do Universo Marvel. A função que “Os Vingadores” possuem de guardiões do mundo material e terrestre, o Doutor Estranho possui como guardião da dimensão metafísica. Seu maior Inimigo é Dormammu, e essa história é muito bem contada pelo roteirista Jon Spaiths de “Prometheus” (2012) e por Scott Derrickson que o dirigiu, e que tem os dois pés na seara do sobrenatural com trabalhos como “Livrai-nos do Mal” (2014); “A Entidade” (2012) e “O Exorcismo de Emily Rose” (2005). “Doutor Estranho” é sobre a origem da história e as pirotecnias computacionais ajudou bastante a que as magias e a performance do médico/mago tivessem magnitude de realidade, como ocorrem nos quadrinhos. Dos aspectos técnicos a serem destacados estão a fotografia de Ben Davis de “Guardiões da Galáxia” (2014) que possibilitou o espetáculo gráfico que se vê, e a trilha sonora de, ninguém menos que, Michael Giacchino, o gênio por trás de “Lost”, que para apimentar a relação entre o espectador e o longa inseriu Pink Floyd com “Interstellar Overdrive”.
Aos que pensam que produto comercial não tem seu valor em outras esferas, a expansão do universo dos quadrinhos para o cinema é uma transposição artística e ideológica com a mesma importância que tiveram os quadrinhos em suas eras, como preconiza a Sociologia das Histórias em Quadrinhos ( a área da Sociologia que relaciona as HQs com os valores vigentes em uma época e com o conceito de inconsciente coletivo), só que aqui o alcance é muito maior. Verificar como é feita essa transposição de linguagem, o que se mantém do original, como marca de arte e o que se contextualiza com os dias de hoje é uma boa pedida. No caso de “Doutor Estranho” a fidelidade à história é o grande mote. Já na atualização com nossa época, sobressai os aspecto tecnológico. Politicamente não aponta nenhuma remetencia a movimentos atuais, nem a assuntos que estejam em voga no momento. É , a princípio, puramente artístico. Organizado esquematicamente e muito bem pensado, o caminho do “Doutor Estranho” vem sendo preparado desde “Homem Aranha 2” (2004) e “Capitão América: Soldado Invernal” (2014) onde é citado, e já está confirmado para “Avengers:Infinty War” (2018) partes 1 e 2 e “Thor 3: Ragnarok” (2017).
Para fechar, é impossível alguém ter assistido a toda a temporada cinematográfica dos super-herois deste ano e não ter feito um ranking ou não ter o de sua preferência em relação às similitudes com o original, a contextualização, ou mesmo, a empatia com o público. “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça” foi dark, teve uma abordagem poderosa e questionamentos procedentes; “Capitão América:Guerra Civil” foi do Homem Aranha; “X-Men: Apocalipse” foi filosófico e dantesco; “Esquadrão Suicida” foi uma catarse social; “Doutor Estranho” é inteligente e poderoso….Mas, “Deadpool”…… Ah! Esse é da hora!
Em tempo: Não saia da sala de exibição antes do créditos finais, pois tem duas cenas pós-créditos.
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