Ida

Por | 2018-06-16T23:40:48-03:00 23 de dezembro de 2014|Resenha cinematográfica|0 Comentários

Ida (Drama); Elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebuchowska, David Ogrodnik; Diretor: Pawel Pawlikowski; Polônia/Dinamarca/França/Reino Unido, 2013. 82 Min.

André Bazin dizia que a função da crítica cinematográfica é prolongar o máximo, possível, na inteligência e na sensibilidade dos que leem, o impacto da obra de arte. E é sobre uma obra de arte, em gênero, número e grau que vamos falar. Poucas são as obras cinematográficas que se podem dar ao luxo de construir uma narrativa tão especial com os elementos que lhe são, naturalmente, dispostos: os diálogos, a fotografia, a trilha sonora, o roteiro, as atuações e a montagem. E este é o caso de “Ida” de Pawel Pawlikowski, que até agora, já recebeu trinta e seis prêmios mundo afora, foi indicado ao Globo de Ouro 2015  e continua na corrida a indicação ao Oscar  de melhor filme estrangeiro, como pré-finalista.

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“Ida” conta a história de um momento na vida de Anna (Agata Trzebuchowska). O da descoberta de suas raízes genealógicas e da história de sua família, numa Polônia dos anos sessenta. Criada num orfanato por freiras, sem nunca ter conhecido seus parentes e prestes a fazer os seus votos de noviça num convento, ela é induzida pela Madre superiora (Halina Skoczynska) a visitar sua única parente viva para conhecer a sua história e decidir conscientemente sobre seus votos.  E parte para a casa de sua tia Wanda (Agata Kulesza), uma juíza de direito, solteirona, inteligente, livre e alcoólatra. A partir daí a aventura das duas em busca de informações sobre os pais de Anna é uma saga de construção de identidade espetacular.

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A forma com a qual a direção de Pawlikowski trabalha os gestuais que designam a incapacidade de criar vínculos, a sede de vida, o pedido por amor, a dignidade póstuma, a necessidade de anestesia para uma vida dolorosa, seja a do álcool ou a da religião, todos, aspectos subjetivos, que são extremamente difíceis de se imagetizar e levar a um consenso do olhar, é competente e formidável. A fotografia que dá o tom da dor, da falta de alegria, do frio da alma, da falta de vida. O olhar, sob uma orientação meticulosa, que pede, que suplica, que fala, que grita, que confessa e não é lido, não é entendido. Os Takes panópticos que dão a noção da imensidão em que ambas estão perdidas e os closes que imagetizam a espera, o tempo que passa, a ânsia, a busca, a ansiedade. A trilha sonora com o saxofone que executa “Naima” e “Equinox” de John Coltrane  como uma alma lamentosa que chora, e o piano de Johann Sebastian Bach que faz o esteio em que se movimentam, emocionalmente, as duas histórias que se cruzam em busca de coisas em comum, vínculo e lastro. Os enquadramentos propositalmente imperfeitos, possivelmente, indicando uma inadequação, um incômodo no estar no mundo, uma dissonância, um não encaixe. E os silêncios que dizem mais do que todo o resto, pois é o momento de fôlego do espectador, o hiato do sentir e da reflexão. A precisão e a contundência dos diálogos se completam com a leitura dos corpos, numa atuação harmonizada com um conjunto que não se trai, não se contradiz e que segue uma linha bonita e fiel. E isso tudo compõe a narrativa dessa história, que a meu ver, é a menina dos olhos de “Ida”. Dentre os vários prêmios recebidos (listados no final do texto) essa foi uma das categorias nos festivais River Run International Film e no Sarasota Filme Festival, ambos concedidos pelo jury. O modo como a história é contada, de dentro para fora, fazendo com que o espectador descubra/sinta as mesmas coisas ao mesmo tempo, juntamente com a personagem, como se ela fosse, é brilhante.

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O filme, nos aspectos de conflitos internos lembra um pouco “A Religiosa” (2013) de Guillaume Nicloux, mas tem ganchos espetaculares que nos jogam no colo do cineasta Michel Haneke. Pouco conhecida dos brasileiros, Agata Kulesza, premiada com a águia de melhor atriz no festival da Polônia por Róza (2011) e Agata Trzebuchowska, marinheira de primeira viagem, estão memoráveis nos papeis de Wanda e Anna, respectivamente.

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Já Pawel Pawlikowski merece uma atenção mais demorada na análise de seu perfil como cineasta. Polonês, graduado em filosofia e literatura pela Universidade de Oxford e especialista em literatura germânica, dá um bom exemplo da cola perfeita entre conhecimento (episteme) e talento para se contar uma história. Conhecido por Last Resort (2000) e My Summer of love (2004). O primeiro, aclamado pela crítica de vários festivais, dentre eles, Toronto e Sundance, e ainda, premiado no BAFTA (British Academy of Film and Televison Arts); o segundo, além de ter abocanhado vários prêmios em festivais, ainda levou o Korda Award por melhor filme britânico. A curiosidade é que Pawel Pawlikowski não é cineasta de formação, e sobre isso ele diz: Eu não sou um cineasta profissional. Isto é apenas uma pequena parte de minha vida, e isto não me define. E não é importante onde eu faça um filme, se na Polônia,  na Inglaterra ou onde for. Os filmes são sempre resultado de onde eu estou, o que eu descobri e o que está em minha cabeça. Eu não vejo o cinema como uma carreira, eu nunca quis um filme comercial. Eu sempre fiz filmes sobre o que interessa a mim e ao tempo, mal ou bem. Porque sei que em algum momento isso realmente não vai interessar a mais ninguém”. E partindo desse pressuposto pessoal, o que Pawel conseguiu, foi fazer um filme que é um instrumento de memória do que o holocausto foi e, ainda é, capaz de fazer com a vida de familiares de suas vítimas.

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“Ida” é um instrumento de memória histórica costurado por dentro do cotidiano dos que  sofreram com a tragédia do holocausto. Não é uma visão panóptica das sequelas emocionais do antissemitismo, mas, um passeio intrínseco, por dentro da alma. É um veículo e tanto de possibilidades de manutenção da memória com vistas a manter a ferida aberta para não deixar cair no esquecimento. Isso tudo sem ser pesado, de uma forma poética, arrastada, lenta, humana, dramática, mas sobretudo, digna. Falar tudo isso em preto e branco com um saxofone, um piano, duas atrizes e um roteiro esplendoroso não é para qualquer um, há que se ter sensibilidade e talento. Não precisou mostrar os exércitos alemão e soviético invadindo a Polônia, não precisou mostrar o campo de concentração de Auschwitz. Bastou mostrar do que foram capazes de fazer na vida de Wanda e Anna. Uma história fictícia que representa muita história real por aí.

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Um Oscar agora, transformaria “Ida”numa obra perene elevando o cinema ao nível de pilar de memória da história contemporânea, institucionalizando o filme como um artefato político e, possivelmente, dando um recado aos movimentos fascistas ressurgentes em todo o mundo, de que a sociedade ocidental está  alerta, de olhos abertos, prestando bastante atenção para não deixar eventos como os da segunda guerra se repetirem. Filmes estrangeiros com bons  roteiros, excelentes fotografias, trilhas sonoras espetaculares  e um conjunto de aspectos cinematográficos e culturais inesquecíveis, virão todos os anos. Porém, filmes com o poder político de memória histórica com os pés no cotidiano, nem sempre. Agora, é só torcer, a sorte está lançada. Numa palavra?…Memorável!

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Lista de premiações de “Ida”, Até então:

  • Melhor fotografia (American Society of Cinematographers -2014)
  • Melhor fotografia – Sapo de Ouro (Camerimage -2013)
  • Melhor fotografia (European Film Award)
  • Melhor atriz (Agata Kulesza); melhor roteiro; Melhor design de produção; melhor filme- Grande prêmio Astúrias (Gijón International Film Festival – 2013)
  • Melhor drama estrangeiro (Golden Trailer Award -2014)
  • Melhor Filme – Cineuropa Award (Les Arcs European Film  Festival – 2013)
  • Melhor filme  (London Film Festival – 2013)
  • Melhor atriz (Agata Kulesza); Melhor filme; Melhor fenômeno artístico; melhor fotografia (Minsk International Film Festival – 2013)
  • Prêmio Ecumenical Lipscomb -Pawel Pawlikowski (Nashville Film Festival -2014)
  • Melhor filme de língua estrangeira (New York Film Critics Circle Awards – 2014)
  • Melhor filme estrangeiro – PFCS Award (Phoenix Film Critics Society Awards -2014)
  • Melhor fotografia, Melhor design de produção, melhor filme, melhor atriz – Agata Kulesza (Polish Film Awards – 2013)
  • Melhor filme, melhor diretor, melhor atriz -Agata Kulesza (Polish Film Award – 2014) 
  • Melhor narrativa, melhor atriz (Agata Kulesza); melhor roteiro (River Run International Film Festival- 2014)
  • Melhor narrativa (Sarasota Film Festival – 2014)
  • Melhor fotografia – SFFCC Award (San Francisco Film Critics Circle -2014)
  • Apresentação Especial – International Critic’s Awards /FIPRESCI (Toronto International Film Festival – 2013)
  • Prêmio ecumênico do jury e grande prêmio para Pawel Pawlikowski (Warsaw International Film Festival – 2013)
  • Prêmio Skoda Film para Pawel Pawlikowski (Wiesbaden GoEast – 2014)

Sobre o Autor:

Crítica cinematográfica, editora do site Cinema & Movimento, mestre em educação, professora de História e Filosofia e pesquisadora de cinema. Acredito no potencial do cinema para fomentar pensamento, informar, instigar curiosidades e ser um nicho rico para pesquisas, por serem registros de seus tempos em relação a indícios de mentalidades, nível tecnológico e momento histórico.

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