Os Capacetes Brancos: um recorte bem mais abrangente

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Os Capacetes Brancos: um recorte bem mais abrangente

Por | 2018-04-24T13:11:52-03:00 1 de março de 2017|Ensaios, Recomendados|0 Comentários

Os Capacete Brancos (The White Helmets) (Documentário); Participações: Khalid Farah, Abu Omar, Mohamed Farah; Direção: Orlando Von Einsiedel; Reino Unido, 2016. 40 Min. #Recomendados #2

“Salvar uma vida é salvar a humanidade”

(lema dos ‘Capacetes brancos’ – a defesa civil da Síria)

Introdução

Desde a primavera árabe que a Síria não saiu do inferno. Com uma História que se confunde com a História da Humanidade, a Síria vem de longas batalhas, de misturas culturais, étnicas e religiosas milenares. O curta-metragem, na verdade, tecnicamente, média -metragem, “Os Capacetes Brancos” do inglês Orlando von Einsiedel nos leva à Síria de hoje. Uma terra devastada e destruída pela guerra.

O texto da categoria recomendados deste mês pinça o nó dessa rede imensa que nos remete a toda uma trajetória da humanidade, que o recorte do filme nos traz para pensar o país, sua importância cultural, a guerra que acontece com um ar de epistemicídio de nossa História, dada a importância histórico-cultural da Síria. E mistura com a potencia do cinema em trazer à tona a realidade atual daquele país quando nenhum noticiário se dedica a tal com propriedade, e de lambuja nos faz pensar a causa refugiada e o alargamento do conceito de cinema, já que o documentário foi produzido por uma plataforma streaming para ser exibido como tal e recebeu o prêmio maior da academia de cinema na categoria, içando a modalidade a outro patamar.

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A Síria

A República Árabe da Síria, assim denominada desde a década de 60 do século XX, veio da era dos arameus, passou pela época mesopotâmica, atravessou o período helenístico, viveu a ascensão do Império Romano, viu o surgimento do islamismo, de califados e dinastias e fez parte do Império Otomano. Situado geograficamente no meio do fogo serrado da panela de pressão que é o Oriente Médio em relação a conflitos bélicos, faz divisa com o Líbano, Turquia, Iraque, Jordânia e Israel. Refúgio de vários grupos étnicos e religiosos, a Síria é um espaço de rastros da História da Humanidade, de costumes a artes plásticas: pintura, artes com vidros, metais e seda; da arquitetura à literatura. Dá para imaginar o quanto tem ou tinha de riqueza em sítios arqueológicos que contavam nossa  trajetória civilizacional? – sim a trajetória da vida humana na terra – apagar esse rastro é ocultar existências e saberes. Boaventura de Sousa Santos nos fala em uma de suas obras organizadas, sobre as estratégias de supressão de saberes, de ‘apagamento’ cultural, que nada mais é, a grosso modo, o desaparecimento da produção epistemológica de um povo, daquele que está do outro lado da linha do conhecimento hegemônico. O pensamento que, segundo Boaventura, elimina o outro é chamado abissal. E assim ele o define: “O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de destruições visíveis e invisíveis. Sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis (…) a divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, se torna inexistente. E é mesmo produzido como inexistente (….) tudo aquilo que é produzido como inexistente  é excluído de forma radical porque permanece exterior ao que a própria concepção de aceite de inclusão considera o outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de co-presença dos dois lados da linha” (Santos & Meneses, 2010; p.31-32)

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Matar a cultura é matar a alma de um povo, é fazê-lo deixar de existir, é apagar seus rastros para que sequer seja lembrado. E ancorada neste premissa temos, o desaparecimento de  produções epistemológicas e rastros culturais importantes de povos, como tivemos o dos indígenas americanos, o dos astecas, o dos maias e outros. É o nosso costume cruel, o nosso veio abissal da não convivência, o nosso rastro fétido de destruição e de prazer nisso. Agora é a vez da  morte/desaparecimento de toda uma produção cultural milenar, de todo um cabedal de conhecimentos acumulados por uma sociedade que desenha a História do homem no planeta.

Um grupo de resgate cultural os Monuments Fine Arts and Archives já fizeram o que podiam para salvar artefatos culturais, desde oculta-los a fotografa-los para terem um registro de existência. Em outros casos, de  proteger sítios arqueológicos até onde deu. Mas,  até 2015, 24 localidades dessas foram totalmente destruídas, outras 104 danificadas e obras de arte babilônicas, assírias, gregas, romanas e bizantinas desapareceram para sempre. Como um chamamento de atenção para o que ali ocorre, para além da guerra sangrenta, da fuga em massa de imigrantes para a Jordânia.  o  cinema traz à baila a realidade de quem está lá para salvar vidas. O média-metragem se ocupa de um viés bastante específico, mas que nem por isso deixa de nos possibilitar vagar pelos outros aspectos. Esse é o da Defesa Civil daquele país que, não havendo mais patrimônio cultural para salvar, ainda restam as vidas. Homens que ficam no território bombardeado para salvar aqueles que insistem em continuar habitando o lugar ou mesmo os impossibilitados de sair, como os doentes. E é essa história que a Netflix produzindo originalmente a obra entrega para o público dirigido por Orlando Von Einsiedel. O média-metragem “The White Helmets” (no original) conta a história desses heróis.

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O documentário

Produzido para plataforma streaming, dirigida por  Von Einsiedel,  e  com uma equipe de cinegrafistas destemida liderada por Frank Dow e composta por: Fadi Al Halabi, Hassan Kattan e Khaleb Kateeb eles acompanham o dia-a-dia da Defesa Civil Síria, os chamados “Capacetes Brancos”. O grupo surgiu em 2013 e é composto por populares como ex-pedreiros, ex-ferreiros, ex-alfaiates que recebem treinamento no sul da Turquia para enfrentar até 200 bombardeios diários, tirando pessoas de escombros. Como heróis em uma cidade fantasma, a equipe conta com 2.900 civis em 120 centos em quase toda a síria. Orlando von Einsiedel acompanhou a unidade de Alepo no distrito de Ansari.

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Viajar com esses meninos – são tão jovens – por quarenta minutos na Alepo milenar destruída é uma jornada de terror, de tensão a toda a prova, testemunhando bombardeios e salvamentos emocionantes. Em formato de entrevistas e relatos de experiências o média-metragem nos faz acompanhar Khalid Farah, um ex-pedreiro pai de uma menininha de 3 anos; Abu Omar, um ex-ferreiro pai de um menino de 2 anos e Mohamed Farah, um ex-alfaiate, num banho de sangue proporcionado pela Russia juntamente com as forças aliadas do governo contra o Estado Islâmico que ceifa vidas civis todos os dias e que foi originado nas insurreições da Primavera Árabe em 2011 no Oriente Médio. Mesmo com todo esse terror que salta aos olhos, invade a alma e nos dá verdadeiros sobressaltos durante a exibição, a abordagem de Orlando von Einsiedel é de esperança. É uma ode a resiliência humana. É positiva, no que diz respeito aos resultados: desde sua fundação ‘Os Capacetes Brancos’ perderam 130 componentes para os bombardeios, durante o mesmo período salvaram 58.000 vidas.

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É maravilhoso ver a cara e  os olhares de esperança, mesmo em meio a tantos escombros e destruição. É um feito sutil e poderoso conseguir mostrar/transmitir a força do bem e sua lenta linha de atuação sendo desenhada tão magnificamente com um trabalho competente de formiguinha que a Defesa civil síria consegue fazer. O heroísmo da equipe de produção não está só na coragem de empunhar a câmera da forma com a qual foi feita num território de guerra, mas em conseguir mostrar, em meio a tudo isso, a nobreza humana. Einsiedel o faz através das declarações dos  ‘capacetes brancos’ …’sem esperança de que vale a vida?’ e da capela “Call for Prayer” em árabe na voz de Abu Omar. Outro aspecto interessante ressaltar, a manutenção cultural da música árabe na trilha sonora assinada por Patrick Jonsson que é a argamassa que faz a cola entre a dissonância da violência vista, dos atos de salvamento e da esperança desenhada. E isso nos remete à potência do cinema.

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O cinema sua potência e seu alargamento conceitual 

Em qual noticiário vimos falar da Síria? Em que News somos informados de que 400.000 sírios foram mortos até hoje desde as insurreições da primavera árabe? Qual veículo de notícias nos mostra o acampamento sírio na Jordânia com 4.000.0000 de refugiados? Em qual lugar temos notícias da crueldade a que o ser humano é capaz e do combate delas por simples mortais  movidos a coragem, amor e esperança? É necessário que alguém imbuído de um projeto cujo objetivo humanitário e político procure, e tenha acesso, às vias do cinema para que saibamos, ou tenhamos noção do nosso entorno. Que é um recorte da realidade, não importa. Que é uma versão, não importa. Que toda narrativa contenha tendenciosidades, não importa. Importa que esse veículo de massa consiga chegar a seu consumidor – já que estamos no capitalismo – e cumpra seu dever de socializar ideias e fazer pensar.

Nessa linha, vamos falar da potência do cinema e da forma com a qual Deleuze a via e usava. Defendida e definida por ele ao longo de sua produção sobre e com a sétima arte, o filósofo criador de conceitos – ele achava que era essa a função do filósofo –  usou a força diversa e malemolente do cinema como um instrumento para explicar os  conceitos que ele – Deleuze – criava. E em meio as explanações ia criando outros conceitos sobre o cinema e no território cinematográfico. Para Deleuze o cinema é potência acima de tudo. E potência para tudo.

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O cinema, em Deleuze, é como se fosse uma reália do plano de imanência, aquele plantel onde todos as possibilidade conceituais existem em seu estado primitivo e de forma infinita. E que dali se pode retirar subsídios para se pensar o restante das outras coisas e se elaborar pensamentos. Conversando com seus pares em seus textos – Bergson, por exemplo – e tendo o cinema como o  lugar onde buscar os elementos para explicar suas ideias e vitrine possível do que ele queria dizer, Deleuze tem no cinema um de seus instrumentos para exemplificar o destrinchar de seu raciocínio filosófico. E diz: “Os grandes autores de cinema nos pareceram confrontáveis, não apenas com pintores, arquitetos, músicos, mas também com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de conceitos. A enorme proporção de nulidade na produção cinematográfica não constitui uma objeção. Ela não é pior que em outros setores, embora tenha consequências econômicas e industriais incomparáveis. Os grandes autores de cinema são, assim, apenas mais vulneráveis (…) A História do cinema é um vasto martirológio. O cinema não deixa por isso de fazer parte da História da Arte e do pensamento, sob as formas autônomas insubstituíveis que esses autores foram capazes de inventar e, apesar de tudo, de passar” (Deleuze, 1983; p.5)

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E é uma faceta dessa potencia que vemos em “Os Capacetes Brancos”. Para além disso, há uma outra premissa que bate à porta, a de que hoje, estamos a viver um momento de transição em relação ao conceito de cinema. Com a indicação e laureamento de “Os Capacetes Brancos” num espaço institucional do cinema que é Oscar, uma produção que é streaming e que não teve a menor intenção de passar pela telona, amplia-se o conceito de cinema para além da sala escura, e se considera também em casa e  em plataformas virtuais cinema tanto quanto àquele. Cai a ideia fechada de cinema como um espaço físico com características específicas. E isso é bom. O alargamento de fronteiras conceituais nos possibilita mudanças, flexibilidade e crescimento. Como diz Maturana quando versa sobre a nossa incapacidade de enxergar, analisar cognitivamente o que nos acontece em quanto nos acontece…”os seres humanos, os seres vivos em geral, não podemos distinguir na experiência entre  o que chamamos ilusão e percepção (2002; p.44). Ou seja ainda é cedo para sabermos no que vai dar isso tudo, para discernirmos acertadamente o que significa essa mudança. Mas que ela está acontecendo, está. E é um privilégio fazer parte de uma geração de transição de algo.

Considerações finais

Para fechar, encerro com Saramago quando diz: “Não se pode ver a ilha se não saímos dela”. Isso serve para tudo, para a forma com a qual precisamos nos isentar de uma questão (dentro do possível) para enxerga-la melhor, para a transição do conceito de cinema, mas, muito principalmente para entendermos a abordagem de “Os Capecetes Brancos”, pois o olhar é de um Inglês cineasta conhecido  pelo longa-metragem “Virunga” (2014) e que com suas redes de significações de cidadão LondrINO, dentro de um contexto de contenção de recebimento de refugiados fala sobre o que acontece no dia-a-dia da Síria. Isso nos remete aos usos a que Certeau (2013), tanto se referia, dentre eles,  o do cinema como oportunidade de socializar esse fato para o maior número possível de pessoas….  e conseguiu!

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Referências:

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

DELEUZE, Gilles. Cinema : a imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

SARAMAGO, José. O conto da Ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das letras, 2016.

Sobre o Autor:

Editora do site Cinema & Movimento e crítica cinematográfica

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