‘Strong Island’ uma catarse sobre o racismo americano

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‘Strong Island’ uma catarse sobre o racismo americano

Por | 2018-07-04T03:49:43-03:00 4 de julho de 2018|Recomendados|0 Comentários

Strong Island (Documentário); Participações: Yance Ford, Harvey Walker, Kevin Myers; Direção: Yance Ford; EUA/Dinamarca, 2017. 107 Min.

“Ensinei aos meus filhos a respeitarem as pessoas pelo caráter e não pela cor da pele; Como pude errar tanto?”

(Barbara Dunmore Ford)

Por mais que sejamos solidários às causas das chamadas minorias, nunca saberemos o que, de fato, passa alguém que nelas se incluem, sem que façamos parte delas. Mas, todos nós de certa forma, conhecemos a sordidez humana e o quanto ela é injusta, incoerente, parcial e desprezível. Em “Strong Island” Yance Ford dirige um documentário catarse que, além de  ser uma homenagem ao irmão, William Ford, assassinado em 1992, faz uma denúncia do racismo norte americano institucionalizado pelo viés pessoal.

Várias obras cinematográficas americanas fazem um passeio histórico e filosófico sobre a questão. Dentre elas, destacamos três mais recentes: “Eu Não Sou Seu Negro”(2016) de Raoul Peck que mostra se construiu a imagem nociva do negro na América, inclusive com ajuda do cinema; “A 13ª Emenda” (2016) de Ava DuVernay que retoma o caminho histórico da discriminação contra o negro pelo viés do sistema prisional e; “O Nascimento de Uma Nação” (2016) de Nate Parker que é uma resposta ao longa de mesmo nome de D.  W. Griffith cem anos depois de sua estreia postulando o nascimento de uma nação de negros e conclamando à luta. Agora é a vez de Yance Ford que usa a sétima arte como um instrumento de desabafo, cartarse e justiça. Produzido pela Netflix, “Strong Island” conta a história da família Ford, ancorada na proposta de dizer ao mundo quem era William Ford. Sem esconder nuances sobre o processo judicial que inocentou o assassino de seu irmão, Yance Ford fala de dentro da questão e sobre ela. Do lado de quem vive o estigma da cor da pele imposto por uma sociedade segregacionista na nação da liberdade. Em tom confessional, com closes, entrevista com familiares e amigos, usando imagens do álbum de família, Yance mostra ao mundo a pessoa de William Ford, Prerrogativa essa negligenciada durante todo o sofrimento da família Ford, do assassinato de William a absolvição de seu algoz.

Os Fatos

Em 7 de abril de 1992 William Ford foi assassinado numa oficina de carros num bairro de Long Island depois de um acidente de trânsito, em que, em troca do conserto de seu carro William aceita não fazer o boletim de ocorrências. Com uma família oriunda da Carolina do Sul onde a polícia e a Klux Klux Klan eram a mesma coisa, e um negro registrando queixa contra um branco num estado que possui bairros de segregação, pareceu bom negócio fazer o acordo do que levar o caso adiante. William acaba tendo problemas com a entrega do carro e sofreu algumas ofensas do mecânico. Na fatídica noite quando foi pedir satisfações por uma das ofensas sofridas foi recebido com um rifle que acabou tirando sua vida.

O documentário

Yance Ford começa contando da morte do irmão e apresenta a história de sua família, desde o casamento dos pais, passando pelo nascimento dos três filhos, mas foca na trajetória do irmão, sua personalidade, seus objetivos e traz o depoimento da irmã, da mãe e de amigos de William. Diferente do que possa parecer, não oculta fatos sobre a personalidade do irmão, como a impulsividade e o senso de proteção que tinha em relação a família e aos amigos, o que viria a depor contra ele com o peso da cor da pele.

“Ilha forte” em tradução livre é um desabafo, uma catarse, quase uma sessão de análise feita pela própria cineasta, que aproveita o suporte do audiovisual para fazer a justiça que não foi feita na época. O longa mostra todos os passos da investigação através do telefonema do investigador do processo, que não se nega a falar sobre o caso, ao contrário da promotora de justiça.

O longa recebeu 12 prêmios mundo afora. Entre eles: o prêmio especial do juri do festival de Sundance, O Gothan Independent Film de melhor documentário, o prêmio do juri  no Frameline San Francisco International , 4 prêmios no Cinema Eye Honors, foi vencedor do Black Film Critics Awards e indicado ao Oscar 2018 da categoria. Negra, queer, com uma história forte para contar para o mundo e uma catarse em processo, a cineasta fez uma junção competente entre  nuances pessoais e sociológicas.

Considerações finais

O cinema ainda é um espaço livre, seja para fomentar questionamentos, por trazer para a pauta assuntos sobre os quais ninguém quer falar, seja por apresentar pensamentos díspares de seus cineastas dos mais conservadores politicamente, como Clint Eastwood, aos mais atrevidos como Lars Von Trier. Ainda é um espaço onde coisas são ditas e que o espectador pode escolher o que mais lhe apetece. Seja para desconstruir conceitos fossilizados, seja para mantê-los, seja para se identificar com uma ideologia ou causa, seja para se divertir. Usar esse instrumento para mostrar, por dentro, o que é ser negro nos EUA é um ponto a mais no ranking de liberdade de expressão e de pensamento desse suporte que, segundo Einsenstein faria a revolução. Yance Ford faz do cinema uma arma para dizer ao mundo quem era seu irmão.

Quem não vive essa realidade presta solidariedade, tenta desconstruir, no cotidiano, o pre-conceito e os estereótipos através da educação dos seus, do policiamento de gestos e atitudes que denunciem a introjeção sutil desses preconceitos vivendo em sociedade durante uma vida inteira. Mas jamais saberemos o que é ser um negro nos EUA, um gay no Oriente Médio, um deficiente físico num lugar em que se pregue e se viva sob a égide da eugenia. O cinema faz esse papel, o de nos transportar via empatia e fomentar pensamentos. Independente das injustiças e parcialidades que a sordidez humana produza em nossas sociedades, o cinema está aí para não deixar calar as discussões e debates sobre assuntos que ninguém quer falar. Mas, para se mudar a realidade há que se falar sobre ela e é esse o movimento que o cinema fomenta. Viva o Cinema! Viva o Audiovisual!

 

Sobre o Autor:

Editora do site Cinema & Movimento e crítica cinematográfica

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